sábado, 31 de agosto de 2019

Lee Krasner



Pedro Mexia
E-Revista Expresso 






LEE É UMA DAS GRANDES ARTISTAS AMERICANAS CONTEMPORÂNEAS, QUERO DIZER, UM DOS GRANDES ARTISTAS, SEM GÉNERO GRAMATICAL
N
uma monografia sobre o expressionismo abstracto americano descubro que houve dezenas de pintoras associadas ao movimento. Tinha uma vaga ideia de algumas, vagos nomes, vagas imagens, talvez Helen Frankenthaler ou Joan Mitchell, certamente Elaine de Kooning, “mulher de Willem de Kooning”, ou Lee Krasner, “mulher de Jackson Pollock”. Faz parte da tradicional invisibilidade das mulheres no mundo das artes serem mulheres de, amantes de, musas de, “deusas e capachos”, como dizia o encantador Picasso. No caso do muito masculino expressionismo abstracto, e da “mulher de Pollock” em especial, o esquecimento é flagrante e injusto, sobretudo para quem, como é o meu caso, tem até pouco interesse em Pollock e na action painting como culto do gesto.


Krasner (1908-1984), uma nova-iorquina descendente de imigrantes russos, foi agora objecto de uma óptima retrospectiva em Londres, no Barbican. A exposição lembra a dificuldade do seu percurso enquanto artista autónoma e reconhecida. Quando a jovem Lena estudou com o célebre Hans Hofmann, os seus desenhos anatómicos já fugindo para o “cubismo analítico” que a escola favorecia, o professor disse que o trabalho dela era “tão bom que não adivinharíamos que era de uma mulher”. Lena passou a assinar com o mais ambíguo “Lee” também por causa dessas ideias feitas. Antes de ver esta exposição, já sabia que Pollock lhe devia bastante em termos pessoais e artísticos; depois da exposição, fiquei a achar Lee tão boa ou até melhor do que ele. E confesso que me impressionou que as obras mais fortes dela sejam imediatamente anteriores ou imediatamente posteriores à morte dele num acidente de viação, como se fossem um augúrio ou uma catarse.

“Desert Moon” (1955), de Lee Krasner




Umas dessas obras, “Desert Moon” (1955), é um portento de não conseguirmos seguir em frente. Ainda que não represente propriamente nada, nem sequer uma lua vista no deserto, significa muito em termos de intensidade, um fundo laranja escuro coberto de formas alongadas, algumas estreitas, talvez estacas ou paliçadas, outras redondas e ovais, formas que parecem artefactos em pedra ou detritos, uns pretos, outros roxos, outros de um lilás que se transforma em encarnado. Do mesmo ano é “Blue Level”, com o fundo azul escuro, traços azuis e laranja esporádicos, quadrados brancos, formas castanhas de alto a baixo e grandes massas negras que enchem a tela como meteoritos. Posso investigar a circunstância destes quadros, a sua intenção e significado, mas não sinto essa necessidade, “Desert Moon” e “Blue Level” já me interpelam suficientemente como enquanto espectador, já têm suficientes emoções inquietantes, emoções formais e cromáticas, com uma força quase psicanalítica. E o mesmo acontece com as obras que a artista definiu como “imagens assustadoras”, entre as quais “Courtship” (1966), um fundo laranja com uns traços vigorosos que sugerem formas orgânicas, órgãos internos, ou serão nuvens, ventanias? Do cubismo, escreveu o crítico Robert Hughes, Lee Krasner trouxe para a abstracção a ideia de que um quadro é um todo, sem centro nem margens. Ou todo centro e todo margens.
A retrospectiva do Barbican acompanha os vários estilos e fases da irrequieta Lee, das suas “pequenas imagens” de quinquilharia colorida aos magníficos e ominosos hieróglifos, das obras de propaganda de guerra às colagens, das escuras e oníricas “viagens nocturas” à pigmentação exuberante e táctil das homenagens a Matisse, dos quadros cerebrais e geométricos aos palimpsestos de obras anteriores, cortadas, coladas, acopladas. Lee Krasner, uma mulher decidida e combativa, disse que ter podido trabalhar à vontade, sem grande atenção dos críticos e coleccionadores, foi “uma bênção”. Mas foi também uma injustiça. No seu auge, com os rasgões cromáticos de 1950 e as imagens convulsivas de 1960, Lee é uma das grandes artistas americanas contemporâneas, quero dizer, um dos grandes artistas, sem género gramatical.
Expresso, 24 de agosto de 2019

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