Cena do filme de O ano da morte de Ricardo Reis, realizado por João Botelho, protagonizado por Chico Diaz (Ricardo Reis) e Vitória Guerra (Marcenda)
Ricardo Reis pega-lhe na mão direita, não para a cumprimentar, apenas quer guiá-la neste labirinto doméstico, para o quarto nunca, por impróprio, para a sala de jantar seria ridículo, em que cadeiras da comprida mesa se sentariam, um ao lado do outro, defronte, e aí quantos seriam, inúmeros ele, ela decerto não única, seja então para o escritório, ela num sofá, eu noutro, entraram já, estão enfim todas as luzes acesas, a do teto, a da secretária, Marcenda olha em redor os móveis pesados, as duas estantes com os poucos livros, o mata-borrão verde, então Ricardo Reis diz, Vou beijá-la, ela não respondeu, num gesto lento segurou o cotovelo esquerdo com a mão direita, que significado poderá ter o movimento, um protesto, um pedido de trégua, uma rendição, o braço assim cruzado por diante do corpo é uma barreira, talvez, uma recusa, Ricardo Reis avançou um passo, ela não se mexeu, outro passo, quase lhe toca, então Marcenda solta o cotovelo, deixa cair a mão direita, sente-a morta como a outra está, a vida que há em si divide-se entre o coração violento e os joelhos trémulos, vê o rosto do homem aproximar-se devagar, sente um soluço a formar-se-lhe na garganta, na sua, na dele, os lábios tocam-se, é isto um beijo, pensa, mas isto é só o princípio do beijo, a boca dele aperta-se contra a boca dela, são os lábios dele que descerram os lábios dela, é esse o destino do corpo, abrir-se, agora os braços de Ricardo Reis apertam-na pela cintura e pelos ombros, puxam-na, e o seio comprime-se pela primeira vez contra o peito de um homem, ela compreende que o beijo ainda não acabou, que neste momento não é sequer concebível que possa terminar, e voltar o mundo ao princípio, à sua primeira ignorância, compreende também que deve fazer mais alguma coisa que estar de braços caídos, a mão direita sobe até ao ombro de Ricardo Reis, a mão esquerda está morta, ou adormecida, por isso sonha, e no sonho relembra os movimentos que fez noutro tempo, escolhe, liga, encadeia os que, a sonhar, a erguem até à outra mão, agora já se podem entrelaçar os dedos com os dedos, cruzarem-se por trás da nuca do homem, não deve nada a Ricardo Reis, responde ao beijo com o beijo, às mãos com as mãos, pensei-o quando decidi vir, pensei-o quando saí do hotel, pensei-o quando subia aquela escada e o vi debruçado do corrimão, Vai beijar-me. A mão direita retira-se do ombro, escorrega, exausta, a esquerda nunca lá esteve, é a altura de o corpo ter um movimento ondulatório de retração, o beijo atingiu aquele limite em que já não se pode bastar a si mesmo, separemo-nos antes que a tensão acumulada nos faça passar ao estádio seguinte, o da explosão doutros beijos, precipitados, breves, ofegantes, em que a boca se não satisfaz com a boca, mas a ela volta constantemente, quem de beijos tiver alguma experiência sabe que é assim, não Marcenda, pela primeira vez abraçada e beijada por um homem, no entanto percebe, percebe-o todo o seu corpo dentro e fora da pele, que quanto mais o beijo se prolongar maior se tornará a necessidade de o repetir, sofregamente, num crescendo sem remate possível em si mesmo, será outro o caminho, como este soluço da garganta que não cresce e não se desata, é a voz que pede, sumida, Deixe-me, e acrescenta, movida não sabe por que escrúpulos, como se tivesse medo de o ter ofendido, Deixe-me sentar. Ricardo Reis encaminha-a até ao sofá, ajuda-a, não sabe o que fará a seguir, que palavra lhe compete dizer, se recitará uma declaração de amor, se pedirá desculpa simplesmente, se ajoelhará aos pés dela para isto ou aquilo, se ficará em silêncio à espera de que ela fale, tudo lhe parecia falso, desonesto, a única verdade profunda foi dizer, Vou beijá-la, e tê-lo feito. Marcenda está sentada, pousou a mão esquerda no regaço, bem à vista, como se a tomasse por testemunha, Ricardo Reis sentou-se também, olhavam-se, sentindo ambos o seu próprio corpo como um grande búzio murmurante, e Marcenda disse, Talvez não devesse dizer-lho, mas eu esperava que me beijasse. Ricardo Reis inclinou-se para a frente, agarrou-lhe a mão direita, levou-a aos lábios, falou enfim, Não sei se foi por amor ou desespero que a beijei, e ela respondeu, Ninguém me beijou antes, por isso não sei distinguir entre o desespero e o amor, Mas, pelo menos, saberá o que sentiu, Senti o beijo como o mar deve sentir a onda, se fazem algum sentido estas palavras, mas ainda é dizer o que sinto agora, não o que senti então, Tenho estado todos estes dias à sua espera, a perguntar-me o que iria acontecer se viesse, e nunca pensei que as coisas se passariam assim, foi quando aqui entrámos que compreendi que beijá-la seria o único ato com algum sentido, e quando há pouco lhe disse que não sabia se a tinha beijado por amor ou por desespero, se nesse momento soube o que significava, agora já não sei, Quer dizer que afinal não está desesperado, ou que afinal não me tem amor, Creio que todo o homem ama sempre a mulher a quem está a beijar, ainda que seja por desespero, Que razões tem para sentir-se desesperado, Uma só, este vazio, Um homem que pode servir-se das suas duas mãos, a queixar-se, Mas eu não estou a queixar-me, digo só que é preciso estar muito desesperado para dizer a uma mulher, assim, como eu disse, vou beijá-la, Podia tê-lo dito por amor, Por amor beijá-la-ia, não o diria primeiro, Então não me ama, Gosto de si, Eu também gosto de si, E contudo não foi por isso que nos beijámos, Pois não, Que vamos fazer agora, depois do que aconteceu, Estou aqui sentada, na sua casa, diante de um homem com quem falei três vezes na vida, vim cá para o ver, falar-lhe e ser beijada, no resto não quero pensar, Um dia talvez tenhamos de o fazer, Um dia, talvez, hoje não [...].
José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago, Editorial Caminho, 1985 [capítulo XI].