terça-feira, 31 de dezembro de 2019

A importância do pensamento crítico para alunos de todas as idades



Helen Lee Bouygues // 22 de novembro de 2019










Quando se trata de raciocínio, as crianças podem-nos surpreender. Fazem perguntas penetrantes que parecem surgir do nada. Mas esse tipo de progresso no raciocínio não acontece no vácuo.


Para desenvolver habilidades de raciocínio, as crianças exigem o tipo certo de ambiente e apoio de escolas, professores e pais, bem como os tipos certos de desafios, discussões e até argumentos.

Especialmente agora - com tantos obstáculos ao pensamento claro e crítico colocados no caminho das crianças - as escolas devem ser proativas e ajudar a orientar o desenvolvimento do pensamento crítico das crianças.
Para esse fim, a Reboot Foundation, que fundei para apoiar a pesquisa e o desenvolvimento do pensamento crítico, publicou recentemente um guia aprofundado e baseado em pesquisas sobre o pensamento crítico para crianças de todas as idades. Aqui estão três tópicos que as escolas podem implementar para ajudar as crianças a pensar melhor: 


1. Incentivar a curiosidade

Na maioria das vezes, as crianças menores de nove anos não estão prontas para o raciocínio abstrato de alto nível. Mas as crianças pequenas estão ansiosas para conhecer o mundo e fazer perguntas sem parar. Por que a relva é verde? Por que as zebras têm listas?

Como adultos, pode ser fácil descartar essas perguntas, mas é vital que reservemos tempo para satisfazer e incentivar a curiosidade dos jovens estudantes.

Discussões abertas são uma excelente maneira de despertar a curiosidade. Os livros podem ser um ótimo ponto de partida. Para iniciar uma discussão sobre moralidade, por exemplo, tente usar o fantástico Mr. Fox, de Roald Dahl. Quando a turma ler sobre o roubo de Fox para alimentar a sua família, pergunte aos alunos se esse roubo é justificado.

Com esse tipo de discussão, as crianças começarão a desenvolver o que é chamado de "metacognição" - ou pensar em pensar. Parte fundamental do pensamento crítico, a metacognição surge quando somos forçados a justificar as nossas crenças e a pensar por que as mantemos. As crianças também começarão a construir a confiança na sua própria capacidade de explorar ideias e expressar opiniões. 


2. Trabalhar a gestão das emoções


A vida emocional das crianças pode parecer desligada da sua capacidade de raciocinar, mas as duas estão intimamente ligadas.

O pensamento crítico genuíno é emocionalmente difícil. Requer uma mistura de confiança e humildade, além da capacidade de se afastar das emoções. Pensadores críticos não aceitam tudo o que lhes dizem, nem assumem que todos os que discordam deles estão errados.

Os educadores podem fomentar essa humilde confiança por meio de lições cuidadosamente elaboradas que desafiam os alunos a deixar a sua zona de conforto. Precisamos de encontrar um equilíbrio entre, por um lado, o realismo e os limites apropriados às habilidades das crianças e, por outro, incentivá-las a experimentar coisas novas e avançar.

Essa abordagem estruturada também ajuda as crianças a aprender a gerir as suas emoções. Elas evitarão sentimentos de frustração e inadequação, mas também não se tornarão complacentes ou satisfeitas.
O objetivo é dar às crianças um senso de competência. Para se tornarem pensadores críticos, as crianças precisam de saber que são dignas e capazes de questionar a precisão e o valor das informações. Elas precisam de saber que, se se aplicarem nos problemas, poderão tornar-se qualificados e informados o suficiente para fazer contribuições importantes. 



3. Debater com os alunos (refletidamente)

Por volta dos 11 ou 12 anos, as crianças entram naquilo a que o psicólogo suíço Jean Piaget chamou de "estádio operacional formal". Antes dessa idade, as crianças estão enraizadas no mundo concreto. Elas tendem a resolver problemas apenas com base em tentativa e erro e lutam para resolver problemas que requerem pensamento abstrato.

Mas os adolescentes podem começar a aplicar princípios gerais. Eles são capazes de discutir abstrações como justiça e beleza, e as suas habilidades argumentativas melhoram.

Escolas e professores podem apoiar o desenvolvimento do raciocínio abstrato, introduzindo problemas e conceitos lógicos. Especialmente por volta dos 12 anos de idade, as crianças podem enfrentar conceitos e silogismos lógicos básicos e trabalhar na identificação de falhas em vários tipos de raciocínio lógico.

Com muita frequência, pensamos em cursos de lógica, filosofia ou pensamento crítico como apropriados apenas para estudantes avançados de ensino médio e superior. Porém, incentivar o pensamento crítico dos alunos em tenra idade pode ser extraordinariamente benéfico.

A instrução em argumentos lógicos pode ser particularmente útil para ajudar as crianças a aprenderem a identificar o pensamento falso e tendencioso com que inevitavelmente se deparará online. Os professores podem ajudá-los a aplicar as suas novas habilidades analisando argumentos em artigos e outros media.
Recentemente, vimos o discurso público marcado por notícias falsas, guerras nos media sociais, incivilidade e coisas piores. A necessidade de recuar e pensar criticamente sobre os problemas que enfrentamos é clara. Mas o pensamento crítico requer prática e orientação a partir de uma idade jovem. 

Referência:

Helen Lee Bouygues, The Importance of Critical Thinking for Students of All Ages, 22 de novembro de 2019. Disponível em: http://edublog.scholastic.com/post/importance-critical-thinking-students-all-ages. Consultado em: 31 de dezembro de 2019



Feliz Ano Novo!










Paradoxos







Cartoon: Marco de Angelis



Vozes transmontanas na paisagem | Bento da Cruz




Paisagem e literatura: o Barroso - paisagens, gentes e bichos




vídeo 1




vídeo 2






Paisagens Literárias de escritores de Trás-os-Montes 
realização: José Barbieri 
vídeo: Eva Ângelo, Solange Carvalho, José Barbieri 
investigação: Margarida Lopes Fernandes
textos literários: Bento da Cruz 
música: Rafael Del Rio 
gaita de foles: Alvorada, Manuel Paulo Martins, recolhido por Domingos Morais, 1985 
produção: Memória Imaterial CRL 
distribuição web: MEMÓRIAMEDIA www.memoriamedia.net 
colaboração: LITESCAPE- Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental



Partindo de depoimentos do escritor Bento da Cruz e de conterrâneos, de imagens recolhidas nas magníficas paisagens transmontanas, em Vila Real, e dos textos literários, esta iniciativa enquadrada pelos projetos LITESCAPE.PT - Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental e Memoriamedia, propõe-se valorizar a paisagem e as experiências da paisagem enquanto processos de transformação dos elementos naturais e culturais.



segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

(In)Consequente






Boligán (México)




O conto da Ilha desconhecida, uma extraordinária reflexão de José Saramago



“Uma história sobre o poder do Sonho e da Vontade de um Homem, sobre o Amor e sobre um caminho para uma Utopia. Conceitos complicados de transmitir às crianças? Talvez…. Mas são elas que dominam melhor do que ninguém essa linguagem. Para nós, crescidos, é que o mundo torna difícil reencontrar a criança capaz de nos fazer ir atrás de um Sonho”. - Rita Lello, responsável pela adaptação do conto ao teatro. Peça representada pel' A Barraca" (2016)







Um Homem que queria um barco…
Um Rei a quem só interessam Ilhas Conhecidas…
Uma Mulher da Limpeza que decide só limpar barcos…
Um Capitão do Porto rezingão…
Dois Marinheiros maus…
Dois Narradores e dois Técnicos a ajudar à festa…
Um palco aberto…
De Palácio em Cais…
De Cais em Barco…
De Barco em Ilha…
Um Sonho…
Uma Vontade de ferro…





Um homem foi bater à porta do rei e disse-lhe, Dá-me um barco. A casa do rei tinha muitas portas, mas aquela era a das petições. Como o rei passava todo o tempo sentado à porta dos obséquios (entenda-se, os obséquios que lhe faziam a ele), de cada vez que ouvia alguém a chamar à porta das petições fingia-se desentendido, e só quando o ressoar contínuo da aldabra de bronze se tornava, mas do que notório, escandaloso, tirando o sossego à vizinhança (as pessoas começavam a murmurar, Que rei temos nós, que não atende), é que dava ordem ao primeiro-secretário para ir saber o que queria o impetrante, que não havia maneira de se calar. Então, o primeiro-secretário chamava o segundo-secretário, este chamava o terceiro, que mandava o primeiro-ajudante, que por sua vez mandava o segundo, e assim por aí fora até chegar à mulher da limpeza, a qual, não tendo ninguém em quem mandar, entreabria a porta das petições e perguntava pela frincha, Que é que tu queres. O suplicante dizia ao que vinha, isto é, pedia o que tinha de pedir, depois instalava-se a um canto da porta, à espera de que o requerimento fizesse, de um em um, o caminho contrário, até chegar ao rei. Ocupado como sempre estava com os obséquios, o rei demorava a resposta, e já não era pequeno sinal de atenção ao bem-estar e felicidade do seu povo quando resolvia pedir um parecer fundamentado por escrito ao primeiro-secretário, o qual, escusado seria dizer, passava a encomenda ao segundo-secretário, este ao terceiro, sucessivamente, até chegar outra vez à mulher da limpeza, que despachava sim ou não conforme estivesse a maré.

Contudo, no caso do homem que queria um barco, as coisas não se passaram bem assim. Quando a mulher da limpeza lhe perguntou pela nesga da porta, Que é que tu queres, o homem, em lugar de pedir, como era o costume de todos, um título, uma condecoração, ou simplesmente dinheiro, respondeu, Quero falar ao rei, Já sabes que o rei não pode vir, está na porta dos obséquios, respondeu a mulher, Pois então vai lá dizer-lhe que não saio daqui até que ele venha, pessoalmente, saber o que quero, rematou o homem, e deitou-se ao comprido no limiar, tapando-se com a manta por causa do frio. Entrar e sair, só por cima dele. Ora, isto era um enorme problema, se tivermos em consideração que, de acordo com a pragmática das portas, ali só se podia atender um suplicante de cada vez, donde resultava que, enquanto houvesse alguém à espera de resposta, nenhuma outra pessoa se poderia aproximar a fim de expor as suas necessidades ou as sua ambições. À primeira vista, quem ficava a ganhar com esse artigo do regulamento era o rei, dado que, sendo menos numerosa a gente que o vinha incomodar com lamúrias, mais tempo ele passava a ter, e mais descanso, para receber, contemplar e guardar os obséquios. À segunda vista, porém, o rei perdia, e muito, porque os protestos públicos, ao notar-se que a resposta estava a tardar mais do que o justo, faziam aumentar gravemente o descontentamento social, o que, por seu turno, ia ter imediatas e negativas conseqüências no afluxo de obséquios. 

No caso que estamos narrando, o resultado da ponderação entre os benefícios e os prejuízos foi ter ido o rei, ao cabo de três dias, e em real pessoa, à porta das petições, para saber o que queria o intrometido que se havia negado a encaminhar o requerimento pelas competentes vias burocráticas. Abre a porta, disse o rei à mulher da limpeza, e ela perguntou, Toda, ou só um bocadinho. O rei duvidou por um instante, na verdade não gostava muito de se expor aos ares da rua, mas depois reflexionou que pareceria mal, além de ser indigno de sua majestade, falar com um súbdito através de uma nesga, como se tivesse medo dele, mormente estando a assistir ao colóquio a mulher da limpeza, que logo iria dizer por aí sabe Deus o quê, De par em par, ordenou. O homem que queria um barco levantou-se do degrau da porta quando começou a ouvir correr os ferrolhos, enrolou a manta e pôs-se à espera. Estes sinais de que finalmente alguém viria atender, e que portanto a praça não tardaria a ficar desocupada, fizeram aproximar-se da porta uns quantos aspirantes à liberalidade do trono que por ali andavam, prontos a assaltar o lugar mal ele vagasse. 

O inopinado aparecimento do rei (nunca uma tala coisa havia sucedido desde que ele andava de coroa na cabeça) causou uma surpresa desmedida, não só aos ditos candidatos mas também à vizinhança que atraída pelo repentino alvoroço, assomara às janelas das casas, no outro lado da rua. A única pessoa que não se surpreendeu por aí além foi o homem que tinha vindo pedir um barco. Calculara ele, e acertara na previsão, que o rei, mesmo que demorasse três dias, haveria de sentir-se curioso de ver a cara de quem, sem mais nem menos, com notável atrevimento, o mandar chamar. repartido pois entre a curiosidade que não pudera reprimir e o desagrado de ver tanta gente junta, o rei, com o pior dos modos, perguntou três perguntas seguidas, Que é que queres, Por que foi que não disseste logo o que querias, Pensarás tu que eu não tenho mais nada que fazer, mas o homem só respondeu à primeira pergunta, Dá-me um barco, disse. O assombro deixou o rei a tal ponto desconcertado, que a mulher da limpeza se apressou a chegar-lhe uma cadeira de palhinha, a mesma em que ela própria se sentava quando precisava de trabalhar de linha e agulha, pois além da limpeza, tinha também à sua responsabilidade alguns trabalhos menores de costura no palácio, como passajar as peúgas dos pajens. 

Mal sentado, porque a cadeira de palhinha era muito mais baixa que o trono, o rei estava a procurar a melhor maneira de acomodar as pernas, ora estendendo-as para os lados, enquanto o homem que queria um barco esperava com paciência a pergunta que se seguiria, E tu para que queres um barco, pode-se saber, foi o que o rei de fato perguntou quando finalmente se deu por instalado, com sofrível comodidade, na cadeirada mulher da limpeza. Para ir à procura da ilha desconhecida, respondeu o homem, Que ilha desconhecida, perguntou o rei disfarçando o riso, como se tivesse na sua frente um louco varrido, dos que têm a mania das navegações, a quem não seria bom contrariar logo de entrada, A ilha desconhecida, repetiu o homem, Disparate, já não há ilhas desconhecidas, Quem foi que te disse, rei, que já não há ilhas desconhecidas, estão todas nos mapas, Nos mapas só estão as ilhas conhecidas, E que ilha desconhecida é essa que queres ir à procura, Se eu to pudesse dizer, então não seria desconhecida, A quem ouviste falar dela, perguntou o rei, agora mais sério, A ninguém, Nesse caso, por que teimas em dizer que ela existe, Simplesmente por que é impossível que não exista uma ilha desconhecida, E vieste aqui para me pedires um barco, Sim, vim aqui para pedir-lhe um barco, E tu quem és, para que eu to dê, E tu quem és, para que não mo dês, Sou o rei deste reino, e os barcos do reino pertencem-me todos, Mais lhes pertencerás tu a eles do que eles a ti, Que queres dizer, perguntou o rei inquieto, Que tu, sem eles, és nada, e que eles, sem ti, poderão sempre navegar. às minhas ordens, com os meus pilotos e os meus marinheiros, Não te peço marinheiros nem pilotos, só te peço um barco, E essa ilha desconhecida, se a encontrares, será para mim, A ti, rei, só te interessam as ilhas conhecidas. Também me interessam as desconhecidas quando deixam de o ser, Talvez esta não se deixe conhecer, Então não te dou o barco, Darás. Ao ouvirem esta palavra, pronunciada com tranqüila firmeza, os aspirantes à porta das petições, em quem, minuto após minuto, desde o princípio da conversa, a impaciência vinha crescendo, e mais para se verem livres dele do que por simpatia solidária, resolveram intervir a favor do homem que queria o barco, começando a gritar, Dá-lhe o barco, dá-lhe o barco. 

O rei abriu a boca para dizer à mulher da limpeza que chamasse a guarda do palácio a vir restabelecer imediatamente a ordem pública e impor a disciplina, mas, nesse momento, as vizinhas que assistiam das janelas juntaram-se ao coro com entusiasmo, gritando como os outros, Dá-lhe o barco, dá-lhe o barco. Perante uma tão iniludível manifestação da vontade popular e preocupado com o que, neste meio tempo, já haveria perdido na porta dos obséquios, o rei levantou a mão direita a impor silêncio e disse, Vou dar-te um barco, mas a tripulação terás de arranjá-la tu, os meus marinheiros são-me precisos para as ilhas conhecidas. Os gritos de aplauso do público não deixaram que se percebesse o agradecimento do homem que viera pedir um barco, aliás o movimento dos lábios tanto teria podido ser Obrigado, meu senhor, como Eu cá me arranjarei, mas o que distintamente se ouviu foi o dito seguinte do rei, Vais à doca, perguntas lá pelo capitão do porto, dizes-lhe que te mandei eu, e ele que te dê o barco, levas o meu cartão. O homem que ia receber um barco leu o cartão de visita, onde dizia Rei por baixo do nome do rei, e eram estas as palavras que ele havia escrito sobre o ombro da mulher da limpeza, Entrega ao portador um barco, não precisa ser grande, mas que navegue bem e seja seguro, não quero ter remorsos na consciência se as coisas lhe correrem mal. Quando o homem levantou a cabeça, supõe-se que desta vez é que iria agradecer a dádiva, já o rei se tinha retirado, só estava a mulher da limpeza a olhar para ele com cara de caso. 

O homem desceu do degrau da porta, sinal de que os outros candidatos podiam enfim avançar, nem valeria a pena explicar que a confusão foi indescritível, todos a quererem chegar ao sítio em primeiro lugar, mas com tão má sorte que a porta já estava fechada outra vez. A aldraba de bronze tornou a chamar a mulher da limpeza, mas a mulher da limpeza não está, deu a volta e saiu com o balde e a vassoura por outra porta, a das decisões, que é raro ser usada, mas quando é, é. Agora sim, agora pode-se compreender o porquê da cara de caso com que a mulher da limpeza havia estado a olhar, foi esse o preciso momento em que ela resolveu ir atrás do homem quando ele se dirigisse ao porto a tomar conta do barco. Pensou ela que já bastava de uma vida a limpar e a lavar palácios, que tinha chegado a hora de mudar de ofício, que lavar a limpar barcos é que era a sua vocação verdadeira, no mar, ao menos, a água nunca lhe faltaria. O homem nem sonha que, não tendo ainda sequer começado a recrutar os tripulantes, já leva atrás de si a futura encarregada das baldeações e outros asseios, também é deste modo que o destino costuma comportar-se conosco, já está mesmo atrás de nós, já entendeu a mão para tocar-nos o ombro, e nós ainda vamos a murmurar, Acabou-se, não há mais que ver, é tudo igual.

Andando, andando, o homem chegou ao porto, foi à doca, perguntou pelo capitão, e enquanto ele não chegava deitou-se a adivinhar qual seria, de quantos barcos ali estavam, o que iria ser o seu, grande já se sabia que não, o cartão de visita do rei era muito claro neste ponto, por conseguinte ficavam de fora os paquetes, os cargueiros e os navios de guerra, tão-pouco poderia ser ele tão pequeno que resistisse mal às forças do vento e aos rigores do mar, o rei também havia sido categórico neste ponto, Que navegue bem e seja seguro, foram estas as suas formais palavras, assim implicitamente excluindo os botes, as faluas e os escaleres, os quais, sendo bons navegantes, e seguros, conforme a condição de cada qual, não tinham nascido para sulcar os oceanos, que é onde se encontram as ilhas desconhecidas. Um pouco afastada dali, escondida por trás de uns bidões, a mulher da limpeza correu os olhos pelos barcos atracados, Para o meu gosto, aquele, pensou, porém a sua opinião não contava, nem sequer havia sido ainda contratada, vamos ouvir antes o que dirá o capitão do porto. O capitão veio, leu o cartão, mirou o homem de alto a baixo, e fez a pergunta que o rei se tinha esquecido de fazer, Sabes navegar, tens carta de navegação, ao que o homem respondeu, Aprenderei no mar. O capitão disse, Não to aconselharia, capitão sou eu, e não me atrevo com qualquer barco, Dá-me então um com que possa atrever-me eu, não, um desses não, dá-me antes um barco que eu respeite e que possa respeitar-me a mim, Essa linguagem é de marinheiro, mas tu não és marinheiro, Se tenho a linguagem, é como se o fosse. O capitão tornou a ler o cartão do rei, depois perguntou, Poderás dizer-me para que queres o barco, Para ir à procura da ilha desconhecida, Já não há ilhas desconhecidas, O mesmo me disse o rei, O que ele sabe de ilhas, aprendeu-o comigo, É estranho que tu, sendo homem do mar, me digas isso, que já não há ilhas desconhecidas, homem da terra sou eu, e não ignoro que todas as ilhas, mesmo as conhecidas, são desconhecidas enquanto não desembarcarmos nelas, Mas tu, se bem entendi, vais à procura de uma onde nunca ninguém tenha desembarcado, Sabê-lo-ei quando lá chegar, Se chegares, Sim, às vezes naufraga-se pelo caminho, mas, se tal me viesse a acontecer, deverias escrever nos anais do porto que o ponto a que cheguei foi esse, Queres dizer que chegar, sempre se chega, não serias quem és se não o soubesses já. O capitão do porto disse, Vou dar-te a embarcação que te convém, Qual é ela, É um barco com muita experiência, ainda do tempo em que toda a gente andava à procura de ilhas desconhecidas, Qual é ele, Julgo até que encontrou algumas, Qual, Aquele. 

Assim que a mulher da limpeza percebeu para onde o capitão apontava, saiu a correr de detrás dos bidões e gritou, è o meu barco, é o meu barco, há que perdoar-lhe a insólita reivindicação de propriedade, a todos os títulos abusiva, o barco era aquele de que ela tinha gostado, simplesmente. Parece uma caravela, disse o homem, Mais ou menos, concordou o capitão, no princípio era uma caravela, depois passou por arranjos e adaptações que a modificaram um bocado, Mas continua a ser uma caravela, Sim, no conjunto conserva o antigo ar, E tem mastros e velas, Quando se vai procurar ilhas desconhecidas, é o mais recomendável. A mulher da limpeza não se conteve, Para mim não quero outro, Quem és tu, perguntou o homem, Não te lembras de mim, Não tenho idéia, Sou a mulher da limpeza, Qual limpeza, A do palácio do rei, A que abria a porta das petições, Não havia outra, E por que não estás tu no palácio do rei a limpar e a abrir portas, Porque as portas que eu realmente queria já foram abertas e porque de hoje em diante só limparei barcos, Então estás decidida a ir comigo procurar a ilha desconhecida, Saí do palácio pela porta das decisões, Sendo assim, vai para a caravela, vê como está aquilo, depois do tempo que passou de e precisar de uma boa lavagem, e tem cuidado com as gaivotas, que não são de fiar, Não queres vir comigo conhecer o teu barco por dentro, Tu disseste que era teu, Desculpa, foi só porque gostei dele, Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar. O capitão do porto interrompeu a conversa, Tenho de entregar as chaves ao dono do barco, a um ou a outro, resolvam-se, a mim tanto se me dá, Os barcos têm chave, perguntou o homem, Para entrar, não, mas lá estão as arrecadações e os paióis, e a escrivaninha do comandante com o diário de bordo, Ela que se encarregue de tudo, eu vou recrutar a tripulação, disse o homem, e afastou-se.

A mulher da limpeza foi ao escritório do capitão para recolher as chaves, depois entrou no barco, duas coisas lhe valeram aí, a vassoura do palácio e a prevenção contra as gaivotas, ainda não tinha acabado de atravessar a prancha que ligava a amurada ao cais e já as malvadas estavam a precipitar-se sobre ela aos guinchos, furiosas, de goela aberta, como se ali mesmo a quisessem devorar. Não sabiam com quem se metiam. A mulher da limpeza pousou o balde, meteu as chaves no seio, firmou bem os pés na prancha, e, redemoinhando a vassoura como se fosse um espadão dos antigos, fez debandar o bando assassino. Foi só quando entrou no barco que compreendeu a ira das gaivotas, havia ninhos por toda a parte, muitos deles abandonados, outros ainda com ovos, e uns poucos com gaivotinhos de bico aberto, à espera da comida, Pois sim, mas o melhor é mudarem-se daqui, um barco que vai procurar a ilha desconhecida não pode ter este aspecto, como se fosse um galinheiro, disse. Atirou para a água os ninhos vazios, quanto aos outros deixou-os ficar, até ver. Depois arregaçou as mangas e pôs-se a lavar a coberta. Quando acabou a dura tarefa, foi abrir o paiol das velas e procedeu a um exame minucioso do estado das costuras, depois de tanto tempo sem irem ao mar e sem terem de suportar os esticões saudáveis do vento. As velas são os músculos do barco, basta ver como incham quando se esforçam, mas, e isso mesmo sucede aos músculos, se não se lhes dá uso regularmente, abrandam, amolecem, perdem nervos das velas, pensou a mulher da limpeza, contente por estar a aprender tão depressa a arte de marinharia. 

Achou esgarçadas algumas bainhas, mas contentou-se com assinalá-las, uma vez que para este trabalho não podiam servir a linha e a agulha com que passajava as peúgas dos pajens antigamente, quer dizer, ainda ontem. Quanto aos outros paióis, viu logo que estavam vazios. Que o da pólvora estivesse desmunido, salvo uns pozinhos negros no fundo, que primeiro mais lhe pareceram caganitas de rato, não lhe importou nada, de fato não está escrito em nenhuma lei, pelo menos até onde a sabedoria duma mulher da limpeza é capaz de alcançar, que ir em busca duma ilha desconhecida tenha de ser forçosamente uma empresa de guerra. Já a ralou, e muito, a falta absoluta de munições de boca no paiol respectivo, não por si própria, que estava mais do que acostumada ao mau passadio do palácio, mas por causa do homem a quem deram este barco, não tarda que o sol se ponha, e ele a aparecer-me aí a clamar que tem fome, que é o dito de todos os homens mal entram em casa, como se só eles é que tivessem estômago e sofressem da necessidade de o encher. E se já traz marinheiros para a tripulação, que são uns ogres a comer, então é que não sei como nos iremos governar, disse a mulher da limpeza.

Não valia a pena ter-se preocupado tanto. O sol havia acabado de sumir-se no oceano quando o homem que tinha um barco surgiu no extremo do cais. Trazia um embrulho na mão, porém vinha sozinho e cabisbaixo. A mulher da limpeza foi esperá-lo à prancha, mas antes que ela abrisse a boca para se inteirar de como lhe tinha corrido o resto do dia, ele disse, Está descansada, trago aqui comida para os dois, E os marinheiros, perguntou ela, Não veio nenhum, como podes ver, Mas deixaste-os apalavrados, ao menos, tornou ela a perguntar, Disseram-me que já não há ilhas desconhecidas, e que, mesmo que as houvesse, não iriam eles tirar-se do sossego dos seus lares e da boa vida dos barcos de carreira para se meterem em aventuras oceânicas, à procura de um impossível, como se ainda estivéssemos no tempo do mar tenebroso, E não lhes falaste da ilha desconhecida, Como poderia falar-lhes eu duma ilha desconhecida, se não a conheço, Mas tens a certeza de que ela existe, Tanta como a de ser tenebroso o mar, Neste momento, visto daqui, com aquela água cor de jade e o céu como um incêndio, de tenebroso não lhe encontro nada, É uma ilusão tua, também as ilhas às vezes parece que flutuam sobre as águas, e não é verdade, Que pensas fazer, se te falta a tripulação, Ainda não sei, Podíamos ficar a viver aqui, eu oferecia-me para lavar os barcos que vêm à doca, e tu, E eu, Tens com certeza um mester, um ofício, uma profissão, como agora se diz, Tenho, tive, terei se for preciso, mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és, O filósofo do rei, quando não tinha que fazer, ia sentar-se ao pé de mim, a ver-me passajar as peúgas dos pajens, e às vezes dava-lhe para filosofar, dizia que todo o homem é uma ilha, eu, como aquilo não era comigo, visto que sou mulher, não lhe dava importância, tu que achas, Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós, Se não saímos de nós próprios, queres tu dizer, Não é a mesma coisa. 

O incêndio do céu ia esmorecendo, a água arroxeou-se de repente, agora nem a mulher da limpeza duvidaria de que o mar é mesmo tenebroso, pelo menos a certas horas. Disse o homem, Deixemos as filosofias para o filósofo do rei, que para isso é que lhe pagam, agora vamos nós comer, mas a mulher não esteve de acordo, Primeiro, tens de ver o teu barco, só o conheces por fora, Que tal o encontraste, Há algumas bainhas das velas que estão a precisar de reforço, Desceste ao porão, encontraste água aberta, No fundo vê-se alguma, de mistura com o lastro, mais isso parece que é próprio, faz bem ao barco, Como foi que aprendeste essas coisas, Assim, Assim como, Como tu, quando disseste ao capitão do porto que aprenderias a navegar no mar, Ainda não estamos no mar, Mas já estamos na água, Sempre tive a idéia de que para a navegação só há dois mestres verdadeiros, um que é o mar, o outro que é o barco, E o céu, estás a esquecer-te do céu, Sim, claro, o céu, Os ventos, As nuvens, O céu, Sim, o céu.

Em menos de um quarto de hora tinham acabado a volta pelo barco, uma caravela, mesmo transformada, não dá para grandes passeios. É bonita, disse o homem, mas se eu não conseguir arranjar tripulantes suficientes para a manobra, terei de ir dizer ao rei que já não a quero, Perdes o ânimo logo à primeira contrariedade, A primeira contrariedade foi estar à espera do rei três dias, e não desisti, Se não encontrares marinheiros que queiram vir, cá nos arranjaremos os dois, Estás doida, duas pessoas sozinhas não seriam capazes de governar um barco destes, eu teria de estar sempre ao leme, e tu, nem vale a pena estar a explicar-te, é uma loucura, Depois veremos, agora vamos mas é comer. Subiram para o castelo de popa, o homem ainda a protestar contra o que chamara loucura, e, ali, a mulher da limpeza abriu o farnel que ele tinha trazido, um pão, queijo duro, de cabra, azeitonas, uma garrafa de vinho. 

A lua já estava meio palmo sobre o mar, as sombras da verga e do mastro grande vieram deita-se-lhes aos pés. É realmente bonita a nossa caravela, disse a mulher, e emendou logo, A tua, a tua caravela, Desconfio que não o será por muito tempo, Navegues ou não navegues com ela, é tua, deu-ta o rei, Pedi-lha para ir procurar uma ilha desconhecida, Mas estas coisas não se fazem do pé para a mão, levam o seu tempo, já o meu avô dizia que quem vai ao mar avia-se em terra, e mais não era ele marinheiro, Sem tripulantes não poderemos navegar, Já o tinhas dito, E há que abastecer o barco das mil coisas necessárias a uma viagem como esta, que não se sabe aonde nos levará, Evidentemente, e depois teremos de esperar que seja a boa estação, e sair com a boa maré, e vir gente ao cais a desejar-nos boa viagem, Estás a rir-te de mim, Nunca me riria de quem me fez sair pela porta das decisões, Desculpa-me, E não tornarei a passar por ela, suceda o que suceder. O luar iluminava em cheio a cara da mulher da limpeza, É bonita, realmente é bonita, pensou o homem, que desta vez não estava a referir-se à caravela. A mulher, essa, não pensou nada, devia ter pensado tudo durante aqueles três dias, quando entreabrira de vez em quando a porta para ver se aquele ainda continuava lá fora, à espera. Não sobrou migalha de pão ou de queijo, nem gota de vinho, os caroços das azeitonas foram atirados para a água, o chão está tão limpo como ficara quando a mulher da limpeza lhe passou por cima o último esfregão. A sereia de um paquete que saía para o mar soltou um ronco potente, como deviam ter sido os do leviatã, e a mulher disse, Quando for a nossa vez faremos menos barulho. Apesar de estarem no interior da doca, a água ondulou um pouco à passagem do paquete, e o homem disse, Mas baloiçaremos muito mais. Riram os dois, depois ficaram calados, passado um bocado um deles opinou que o melhor seria irem dormir, Não é que eu tenha muito sono, e o outro concordou, Nem eu, depois calaram-se outra vez, a lua subiu e continuou a subir, em certa altura a mulher disse, Há beliches lá em baixo, o homem disse, Sim, e foi então que se levantaram, que desceram à coberta, aí a mulher disse, Até amanhã, eu vou para este lado, e o homem respondeu, E eu vou para este, até amanhã, não disseram bombordo nem estibordo. Decerto por estarem ainda a praticar na arte. A mulher voltou atrás, Tinha-me esquecido, tirou do bolso do avental dois cotos de vela, Encontrei-os quando andava a limpar, o que não tenho é fósforos, Eu tenho, disse o homem. Ela segurou as velas, uma em cada mão, ele acendeu um fósforo, depois abrigando a chama sob a cúpula dos dedos curvados, levou-a com todo o cuidado aos velhos pavios, a luz pegou, cresceu lentamente como faz o luar, banhou a cara da mulher da limpeza, nem seria preciso dizer o que ele pensou, É bonita, mas o que ela pensou, sim, Vê-se bem que só tem olhos para a ilha desconhecida, aqui está como as pessoas se enganam nos sentidos do olhar, sobretudo ao princípio. Ela entregou-lhe uma vela, disse, Até amanhã, dorme bem, ele quis dizer o mesmo doutra maneira, Que tenhas sonhos felizes, foi a frase que lhe saiu, daqui a pouco, quando lá estiver em baixo, deitado no seu beliche, vir-lhe-ão à idéia outras frases, mais espirituosas, sobretudo mais insinuantes, como se espera que sejam as de um homem quando está a sós com uma mulher. Perguntava-se se já dormiria, se teria tardado a entrar no sono, depois imaginou que andava à procura dela e não a encontrava em nenhum sítio, que estavam perdidos os dois num barco enorme, o sonho é um prestidigitador hábil, muda as proporções das coisas e as suas distâncias, separa as pessoas, e elas estão juntas, reúne-as, e quase não se vêem uma à outra, a mulher dorme a poucos metros e ele não soube como alcança-la, quando é tão fácil ir de bombordo a estibordo.

Tinha-lhe desejado felizes sonhos, mas foi ele quem levou toda a noite a sonhar. Sonhou que a sua caravela ia no mar alto, com as três velas triangulares gloriosamente enfunadas, abrindo caminho sobre as ondas, enquanto ele manejava a roda do leme e a tripulação descansava à sombra. Não percebia como podiam ali estar os marinheiros que no porto e na cidade se tinham recusado a embarcar com ele para ir à procura da ilha desconhecida, provavelmente arrependeram-se da grosseira ironia com que o haviam tratado. Via animais espalhados pela coberta, patos coelhos, galinhas, o habitual da criação doméstica, debicando os grãos de milho ou roendo as folhas de couve que um marinheiro lhes atirava, não se lembrava de quando os tinha trazido para o barco, fosse como fosse era natural que ali estivessem, imaginemos que a ilha desconhecida é, como tantas vezes o foi no passado, uma ilha deserta, o melhor será jogar pelo seguro, todos sabemos que abrir a porta da coelheira e agarrar um coelho pelas orelhas sempre foi mais fácil do que persegui-lo por montes e vales. 

Do fundo do porão veio agora um coro de relinchos de cavalos, de mugidos de bois, de zurros de asnos, as vozes dos nobres animais necessários para o trabalho pesado, e como foi que vieram eles, como podem estar numa caravela onde a tripulação humana mal cabe, de súbito o vento deu uma guinada, a vela maior bateu e ondulou, por trás dela estava o que antes não se vira, um grupo de mulheres que mesmo sem as contar se adivinha serem tantas quantos os marinheiros, ocupam-se nas suas coisas de mulheres, ainda não chegou o tempo de se ocuparem doutras, está claro que isto só pode ser um sonho, na vida real nunca se viajou assim. O homem do leme buscou com os olhos a mulher da limpeza e não a viu, Talvez esteja no beliche de estibordo, a descansar da lavagem da coberta, pensou, mas foi um pensar fingido, porque ele bem sabe, embora também não saiba como o sabe, que ela à última hora não quis vir, que saltou para a ilha desconhecida, vou-me embora, e não era verdade, agora mesmo andam os olhos dele a procurá-la e não a encontram. Neste momento o céu cobriu-se e começou a chover, e, tendo chovido, principiaram a brotar inúmeras plantas das fileiras de sacos de terra alinhadas ao longo da amurada, não estão ali porque se suspeite que não haja terra bastante na ilha desconhecida, mas porque assim se ganhará tempo, no dia em que lá chegarmos só teremos que transplantar as árvores de fruto, semear os grãos das pequenas searas que vão amadurecer aqui, enfeitar os canteiros com as flores que desabrocharão destes botões. 

O homem do leme pergunta aos marinheiros que descansam na cobertura se avistam alguma ilha desabitada, e eles respondem que não vêem nem de umas nem das outras, mas que estão a pensar em desembarcar na primeira terra povoada que lhes apareça, desde que haja lá um porto onde fundear, uma taberna onde beber e uma cama onde folgar, que sim não se pode, com toda esta gente junta. E a ilha desconhecida, perguntou o homem do leme, A ilha desconhecida é coisa que não existe, não passa duma idéia da tua cabeça, os geógrafos do rei foram ver nos mapas e declararam que ilhas por conhecer é coisa que se acabou desde há muito tempo, Devíeis ter ficado na cidade, em lugar de vir atrapalhar-me a navegação, Andávamos à procura de um sítio melhor para viver e resolvemos aproveitar a tua viagem, Não sois marinheiros, Nunca o fomos, Sozinho, não serei capaz de governar o barco, Pensasses nisso antes de ir pedi-lo ao rei, o mar não ensina a navegar. Então o homem do leme viu uma terra ao longe e quis passar adiante, fazer de conta que ela era a miragem de uma outra terra, uma imagem que tivesse vindo do outro lado do mundo pelo espaço, mas os homens que nunca haviam sido marinheiros protestaram, disseram que ali mesmo é que queriam desembarcar, Esta é uma ilha do mapa, gritaram, matar-te-emos se não nos levares lá. Então, por si mesma, a caravela virou a proa em direção à terra, entrou no porto e foi encostar à muralha da doca, Podeis ir-vos, disse o homem do leme, ato contínuo passaram em correnteza, primeiro as mulheres, depois os homens, mas não foram sozinhos, levaram com eles os patos, os coelhos e as galinhas, levaram os bois, os burros e os cavalos, e até as gaivotas, uma após outra, levantaram vôo e se foram do barco transportando no bico os seus gaivotinhos, proeza que não tinha sido cometida antes, mas há sempre uma vez. O homem do leme assistiu à debandada em silêncio, não fez nada para reter os que o abandonavam, ao menos tinham-no deixado com as árvores, os trigos e as flores, com as trepadeiras que se enrolavam nos mastros e pendiam da amurada como festões. Por causa do atropelo da saída haviam-se rompido e derramado os sacos de terra, de modo que a coberta era toda ela como um campo lavrado e semeado, só falta que venha um pouco mais de chuva para que seja um bom ano agrícola. 

Desde que a viagem à ilha desconhecida começou que não se vê o homem do leme comer, deve ser porque está a sonhar, apenas a sonhar, e se no sonho lhe apetecesse um pedaço de pão ou uma maçã, seria um puro invento, nada mais. As raízes das árvores já estão penetrando no cavername, não tarda que estas velas içadas deixem de ser precisas, bastará que o vento sopre nas copas e vá encaminhando a caravela ao seu destino. É uma floresta que navega e se balanceia sobre as ondas, uma floresta onde, sem saber-se como, começaram a cantar pássaros, deviam estar escondidos por aí e de repente decidiram sair à luz, talvez porque a seara já esteja madura e é preciso ceifá-la. Então o homem trancou a roda do leme e desceu ao campo com a foice na mão, e foi quando tinha cortado as primeiras espigas que viu uma sombra ao lado da sua sombra. Acordou abraçado à mulher da limpeza, e ela a ele, confundidos os corpos, confundidos os beliches, que não se sabe se este é o de bombordo ou o de estibordo. Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher foram pintar na proa do barco, de um lado e do outro, em letras brancas, o nome que ainda faltava dar à caravela. Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma.

Saramago, José 2001). O conto da Ilha desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras.
Texto transcrito da revista Ecos do Saber, 30 de dezembro de 2019



Xavier Marabout | Revisitação de Tintim e Hoper





Tintim, o herói de BD criado por Hergé



Com mais de 230 milhões de cópias vendidas, Tintim é sem dúvida um dos heróis das histórias aos quadrinhos mais populares do mundo, ou pelo menos da Europa. O jovem repórter viveu aventuras incríveis que fizeram muitos de nós viajar, e ninguém poderia pensar voltar a vê-lo em novas paisagens. No entanto, existe um artista francês chamado Xavier Marabout, e...

O artista, pintor e escultor, Xavier Marabout sempre foi fascinado pelas histórias aos quadrinhos e pelas pinturas dos grandes mestres. Com o tempo, desenvolveu um estilo próprio juntando-se a esses dois universos e era natural que um dia ele tivesse a ideia de desenvolver a série Hergé-Hopper.

Hergé, pseudónimo de Georges Remi, é o famoso criador de Tintim, e Hopper, Edward Hopper, pintor e escultor considerado como um dos grandes representantes do realismo norte americano, é conhecido pelas suas pinturas que representam o quotidiano da classe média.

Praticamente toda a gente conhece o universo de Tintim, mas o de Hopper talvez seja menos familiar. Uma das suas pinturas mais famosas chama-se Nighthawks




Nighthawks por Edward Hopper




O quadro foi vendido por 3000 dólares ao Instituto de Arte de Chicago, em 1942. Hoje, algumas das suas pinturas estão a ser vendidas por mais de 40 milhões de dólares.

É com base no estilo do pintor e no mundo dos quadrinhos que Xavier Marabout imaginou dezenas de cenas que destacam a vida sentimental e tumultuada de Tintim.







Créditos: Xavier Marabout




Referência: 
Thomas, R. (2019). Il fusionne l’univers de Tintin avec celui du peintre américain Hopper pour un mix réaliste et étonnant. 29 de março. Disponível em: https://creapills.com/tintin-hopper-xavier-marabout-20190329?fbclid=IwAR30BPce7zoZRKyszAZUl1B6pRFnVb0BapRrxbtwmJWeN81SYnef6Xm_QsE
Consultado em: 30 de dezembro de 2019 (adaptação livre)


Aquela altura do ano | Frozen: Uma Aventura de Olaf







Curta-metragem de animação 3D de 2017, produzido pela Walt Disney Animation Studios e lançado pela Walt Disney Pictures.


Balanço Internacional de 2019





Cartoon: Vasco Gargalo


domingo, 29 de dezembro de 2019

Vozes transmontanas na paisagem | A. M. Pires Cabral




Paisagem e Literatura: paisagens de pedra e água











Paisagens Literárias de escritores de Trás-os-Montes realização: José Barbieri 
vídeo: Eva Ângelo, Solange Carvalho, José Barbieri 
investigação: Ana Lavrador, Margarida Lopes Fernandes, Isabel Alves 
textos literários: A. M. Pires Cabral 
música: Rafael Del Rio 
gaita de foles: Alvorada, Manuel Paulo Martins, recolhido por Domingos Morais, 1985 
produção: Memória Imaterial CRL 
distribuição web: MEMÓRIAMEDIA www.memoriamedia.net 
colaboração: LITESCAPE- Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental



Partindo de depoimentos do escritor A. M. Pires Cabral e de conterrâneos, de imagens recolhidas nas magníficas paisagens transmontanas, em Vila Real, e dos textos literários, esta iniciativa enquadrada pelos projetos LITESCAPE.PT - Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental e Memoriamedia, propõe-se valorizar a paisagem e as experiências da paisagem enquanto processos de transformação dos elementos naturais e culturais.



Só a natureza é divina











"Só a natureza é divina, e ela não é divina..." - Alberto Caeiro



Levantado do Chão | A paisagem e as palavras que lá estão



Paisagem e literatura










Registo Audio visual da apresentação do livro "A paisagem e as palavras que lá estão, Levantado do chão, um romance politico", com o Apoio do IELT-FCSH e da Fundação José Saramago. 

Participação de Pilar del Rio, presidente da fundação José Saramago, Viriato Soromenho Marques, professor na Universidade de Lisboa, e a autora do livro e colaboradora do IELT-FCSH,  Fernanda Cunha.

9 de Outubro de 2012

sábado, 28 de dezembro de 2019

Camilo responde a Eça







Autor: José da Cruz Santos
Editor: Modo de Ler
Data de lançamento: 03/11/2019
ISBN: 9789895442072
Nº Páginas: 46





A carta de Eça de Queirós a Camilo Castelo Branco, que não chegou a ser enviada, terá sido escrita em 1887, e só foi publicada 25 anos depois, na obra postuma de Eça de Queirós, Últimas Páginas. Prefácio de Vasco Graça Moura.

Abel Manta contribuiu para este volume com quatro retratos que juntam Camilo e Eça. 




Os dois mitos da internet







ILUSTRAÇÃO: SAM WHITNEY; GETTY IMAGES




Em 21 de janeiro de 2010, a Secretária de Estado Hillary Rodham Clinton dirigiu-se a uma multidão no Newseum em Washington, DC. Ela estava lá para proclamar o poder e a importância da "liberdade na Internet". Nos últimos anos, disse, as ferramentas online permitiram que pessoas de todo o mundo organizassem campanhas de sangue, planeassem manifestações e até se mobilizassem em manifestações de massa pela democracia. “Uma conexão com redes globais de informação é como uma rampa para a modernidade”, declarou ela, e os EUA fariam a sua parte para ajudar a promover “um planeta com uma Internet, uma comunidade global e um corpo comum de conhecimento que nos beneficia todos."

No seu discurso, Clinton reconheceu que a internet também poderia ser um instrumento mais sombrio - que o seu poder poderia ser usado para fins maléficos, para espalhar ódio ou esmagar dissidentes. Mas a sua tese baseava-se nas crenças claras do tecno-fundamentalismo: que as tecnologias digitais necessariamente tendem à liberdade de associação e expressão e que as empresas norte-americanas por trás das plataformas promoveriam os valores americanos. A democracia ia espalhar-se. As fronteiras iam dissolver-se. As mentes iam abrir-se.

Não teria sido excelente? Dez anos depois, Clinton é uma cidadã comum, a quem foi negado o mais alto cargo a que aspirava, por um amador político que alavancou o Facebook, o Twitter e o YouTube para despertar o entusiasmo pela sua agenda nativista, protecionista e racista. Ah, e o Newseum também está a fechar. Em 2010, Clinton tinha chamado a esta instituição "um monumento a algumas de nossas liberdades mais preciosas". Agora, também parece ser uma relíquia de um otimismo passado.

A segunda década do século XXI começou com a crença ingénua sobre o potencial da Internet para melhorar a democracia e melhorar a qualidade de vida na Terra. No final de 2019, poucas pessoas poderão manter essa posição com honestidade.

Havia sinais, a princípio, de que a postura otimista de Clinton tinha sido predita. O discurso sobre “liberdade na Internet” foi apresentado quase exatamente um ano antes das revoltas da Tunísia e do Egito em 2011. A ideia estava no ar e parecia que tínhamos provas. Uma " revolução do Twitter "começou a espalhar-se pelo mundo.

Mas a evidência era um erro. Quando os protestos eclodiram em Tunes, em dezembro de 2010, muita gente tomou conhecimento deles via Twitter, em inglês ou francês, tal como o fizeram a maioria dos jornalistas europeus e americanos, e assim assumiram que o Twitter teve um papel maior na divulgação do movimento do que as mensagens de texto ou da televisão por satélite Al Jazeera. De fato, antes da revolução, apenas cerca de 200 contas twittavam ativamente na Tunísia. (O Twitter nem sequer ofereceria o seu serviço em árabe até 2012.) No geral, menos de 20% dos cidadãos do país usavam plataformas de redes sociais de qualquer tipo. Quase todos, no entanto, usavam telemóveis para enviar mensagens de texto. Sem surpresa e sem espetacularidade, as pessoas usaram as ferramentas de comunicação que tinham disponíveis, assim como os manifestantes sempre fizeram.

O mesmo aconteceu com o Egito. Quando, em janeiro de 2011, as pessoas furiosas encheram as ruas do Cairo, Alexandria e Port Said, muitos assumiram incorretamente, mais uma vez, que o Twitter era mais do que apenas uma ferramenta especializada das elites cosmopolitas, urbanas e educadas do país. O Egito em 2011 tinha menos de 130.000 usuários no Twitter. No entanto, esse movimento também seria incluído na retórica da revolução do Twitter.

O que o Facebook, o Twitter e o YouTube ofereceram aos manifestantes urbanos de elite foi importante, mas não decisivo, para as revoluções na Tunísia e no Egito. Eles praticamente permitiram ao resto do mundo saber o que estava a acontecer. Enquanto isso, o sucesso inicial dessas revoluções (que seria rápida e brutalmente revertida no Egito, e apenas sustentada na Tunísia até hoje) permitiu que os tecno-otimistas ignorassem todos os outros fatores que desempenharam papéis mais decisivos - principalmente décadas de organização entre ativistas que se preparam para essa oportunidade, juntamente com alguns erros económicos e políticos que enfraqueceram os regimes.

A velocidade dessas duas revoluções, com cada uma levando à deposição de um líder em questão de semanas, também permitiu que os espectadores os dissociassem de outras revoltas em 2011 que não terminaram tão rapidamente ou tão bem, ou que não terminaram de todo. Enquanto o mundo observava as ruas do Cairo e Tunis, os manifestantes exigiam revolução ou reforma no Bahrein, Líbano e Marrocos. Enquanto o rei do Marrocos, Mohammed VI, fez reformas modestas, levantamentos semelhantes na Líbia terminaram mais lentamente com a deposição do ditador Moammar Gadhafi em agosto de 2011. E, o mais ominoso, o otimismo dos protestos espalhou-se à Síria, onde uma guerra civil brutal continua até hoje, enquanto Bashar al-Assad permanece firmemente no controle.

No entanto, surgiu um mito inabalável sobre a primavera árabe: os reformadores pró-democráticos tinham incentivado uma ampla população através do Facebook e Twitter. Essa é uma das razões pelas quais tantas pessoas aceitaram a agenda da "liberdade na Internet" de Hillary Clinton durante tanto tempo.

O Facebook e o Twitter aproveitaram toda essa boa publicidade para se atribuírem papéis mais centrais na política e na política. Ao mesmo tempo, os media sociais e digitais ampliaram drasticamente o seu alcance. Em 2018, mais de 35 milhões de egípcios (mais de um terço da população) usava o Facebook regularmente e mais de 2 milhões usavam o Twitter. Incorporado no telemóvel, que cresceu de raro para quase universal em todo o mundo na última década, o Facebook tornou-se a principal maneira de bilhões de pessoas saberem o que se passa no mundo à sua volta.

Em 2019, o Facebook destaca-se como uma poderosa máquina organizacional; de certa modo, o serviço cresceu de acordo com papel que lhe foi destinado no início da década. Se se quiser encher o National Mall com manifestantes anti-Trump ou apelar para um referendo nativista, o Facebook é o meio ideal para identificar pessoas afins e pressioná-las a agir. A sua escala global, a plataforma precisa de publicidade e a sua tendência para ampliar conteúdos emocionalmente marcados tornaram-no indispensável aos organizadores políticos de todas as formas de persuasão. De fato, pode ser a ferramenta motivacional mais eficaz jamais criada. O mito de 2010 parecia ter-se tornado realidade, pelo menos em parte.

Democracias saudáveis, no entanto, exigem mais do que motivação. Precisam de deliberação. Nenhuma das principais plataformas digitais globais que entregam propaganda, desinformação e notícias a bilhões de dólares é projetada para promover um debate sóbrio e informado entre pessoas de mentalidade diferente. Elas não estão otimizados para o tipo de discurso que precisaremos enfrentar face aos desafios cruciais da próxima década: migração, doenças infecciosas e mudanças climáticas, só para citar alguns.

Alinhar pessoas e incendiá-las com a indignação pode diminuir os compromissos cívicos através das linhas de identidade e minar a confiança nos tipos de instituições que cultivam a deliberação, desde as escolas ao jornalismo até à ciência. Que o otimismo cor-de-rosa de 2011 rapidamente se transformou no lado sombrio da revolução digital tornou-se demasiado evidente para ser ignorado.

Dois eventos políticos seriam o ponto de partida para essa mudança. O primeiro foi a revelação, em 2013, do ex-contratado da Inteligência norte americana Edward Snowden de que os governos tinham acedido a canais, considerados seguros, das principais empresas de dados para rastrear e criar perfis de cidadãos sem o conhecimento destes.

Percebemos, de uma só vez, que o que antes poderia parecer um sistema "inofensivo" de vigilância privada - o rastreamento das nossas preferências, expressões e desejos por conveniência e personalização - tinha sido entregue a incontáveis atores estatais. O aviso de Snowden fez com que os perigos da vigilância maciça de dados se tornasse tema das conversas públicas, deixando jornalistas e cidadãos sensibilizados para novas revelações.

O segundo ataque de pânico aconteceu quando o Guardian e o New York Times revelaram a amplitude dos dados dos eleitores retirados do Facebook por uma empresa de consultoria pouco conhecida, com sede em Londres. A Cambridge Analytica alegou ter uma fórmula mágica que poderia classificar os usuários com base na sua psicologia e vendeu as suas suposições ilusórias a campanhas políticas em todo o mundo. Era tudo um absurdo, é claro, e até 2016 o jogo deveria ter terminado. A corrida presidencial de Ted Cruz fracassou, apesar - ou talvez por causa - da sua dependência da Cambridge Analytica. Quando o membro do conselho da CA Steve Bannon assumiu o controle da campanha presidencial de Donald Trump naquele verão, levou consigo os serviços da empresa. Nenhuma pessoa que tenha trabalhado na campanha de Trump foi enganada. Não precisavam dos dados de usuário de dois anos da Cambridge Analytica; já tinham o poder de segmentação do Facebook, e a equipa daquela à sua disposição. A rede social ficou feliz ao ligar os dados a eleitores precisos que  pretendia alcançar por meio do seu poderoso sistema de publicidade.

Sentados no escritório de San Antonio, o mesmo dos funcionários da Cambridge Analytica, os funcionários do Facebook ajudaram Trump enquanto a campanha segmentava cirurgicamente os eleitores e mensagens personalizadas para os motivar a doar, participar em comícios, bater às portas e, finalmente, a votar no seu candidato. Trump venceu os três estados que o colocaram no Salão Oval por menos de 80.000 votos. Centenas de coisas diferentes influenciaram os eleitores naquele ano, mas o chefe da campanha digital de Trump, Brad Parscale, entendeu que a capacidade do Facebook de identificar e motivar potenciais eleitores de Trump nos Estados Unidos fez a diferença - talvez a diferença principal .

Claramente, o Facebook impulsionou Trump, tal como Rodrigo Duterte nas Filipinas e Narendra Modi na Índia. Ajudou Jair Bolsonaro, outro candidato com tendências autoritárias, a conquistar a presidência do Brasil, em 2018. Bolsonaro, como Modi, tinha feito a sua campanha no Facebook, YouTube e WhatsApp - o serviço de mensagens privadas criptografadas do Facebook.

Enquanto isso, os media noticiaram o papel do Facebook na ampliação do apelo ao genocídio em Mianmar, bem como à violência sectária na Índia e no Sri Lanka. Outros serviços também foram apontados como culpados por espalharem conteúdo destrutivo e cheio de ódio. Os relatórios descreveram o modo como o mecanismo de recomendação do YouTube direciona os fãs de videojogos para vídeos racistas e misóginos; e explicaram que o Twitter foi preenchido com trolls e bots que ampliam a propaganda destinada a fraturar democracias liberais em todo o mundo.

Por fim, o mito de 2010 foi transformado noutro mito: um dia pensámos que as plataformas online ajudariam a depor ditadores em todo o mundo: agora, passamos a pensar que as mesmas tecnologias estão programadas para a fazer o oposto - para fortalecer os fanáticos e sustentar regimes autoritários. Nenhuma dessas noções está totalmente errada. Mas elas conduzem-nos a uma agenda clara para enfrentarmos excessos e concentrações de poder. As tecnologias não determinam nada. As tecnologias influenciam tudo.

O Facebook, com os seus 2,5 bilhões de usuários em mais de 100 idiomas, é diferente de qualquer ferramenta de comunicação que já tivemos. Deveria suportar o peso das nossas críticas e a atenção regulatória, mas não a sua extensão total. Não precisamos de olhar para os vilões de Bond como aqueles que dirigiam o Cambridge Analytica e culpá-los pelos nossos destinos; devemos lembrar-nos que o Facebook apenas amplifica e concentra tendências perigosas já existentes no mundo.

As tecnologias não são distintas das pessoas que as usam. São, como Marshall McLuhan nos disse, extensões de nós mesmos. Como tal, elas incorporam os preconceitos que aplicamos através de seu design e uso. Nenhuma tecnologia é neutra por design ou efeito. Elas tornam algumas ações mais fáceis e outras mais difíceis, e é preciso um esforço extra para perceber e corrigir esses preconceitos.

O Facebook, Twitter e YouTube não foram inventados para minar a confiança na ciência ou doutrinar racistas. Simplesmente acabaram por se tornar nas melhores formas possíveis para atingir esses objetivos. Foram inventados para uma espécie melhor do que a nossa. Nenhuma tecnologia é fixa na sua forma ou uso. As pessoas moldam as tecnologias ao longo do tempo e as tecnologias moldam as pessoas. É uma dialética complexa.

Focamo-nos muito pouco na degradação lenta e constante da nossa capacidade de pensar e falar como adultos razoáveis. O objetivo da propaganda da direita raramente é gerar um efeito mensurável e de curto prazo, como vencer uma eleição. O objetivo é alterar o alcance do que as pessoas imaginam ser possível ou razoável - forçar os limites do aceitável. É um longo jogo destinado a quebrar normas. O sucesso político segue, mas anos depois e de uma maneira imprevisível.

Temos o poder de resistir a essas tecnologias e ao lixo que elas lançam. Mas a resistência requer consciência e movimentos políticos firmes. É preciso lei e regulamentação. É preciso ter uma noção clara do que significaria viver uma vida boa e fortalecer instituições e tecnologias que nos guiam para essa vida.

Enquanto entramos numa nova década castigados e mais cínicos sobre a vigilância, a propaganda e o potencial de meras conexões para melhorar as nossas vidas, corremos o risco de entrar numa paranóia irracional sobre o que resta. O discurso de Hillary Clinton em 2010 deve provocar uma nostalgia dolorosa. Também nos deve motivar a entender o ambiente global de informações que construímos e imaginar um bem melhor.


Referência:
Siva Vaidhyanathan. (2019). The Two Myths of the Internet - The 2010s began with one story about the political power of technology. It ended with another. Both were wrong. 27 december. Disponível em: