quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

O gordo ainda vai à baliza








A sociedade continua a encarar o gordo como um ser inferior. É como se formassem a única minoria sem direito ao véu protetor da indignação.
Texto: Henrique Raposo | Ilustrações: Aalex Gozblau






O romance “A Gorda”, de Isabela Figueiredo, arranca assim: “Quarenta quilos é muito peso. Foram os que perdi após a gastrectomia (...) Ainda penso como gorda. Serei sempre gorda. Sei que o mundo das pessoas normais não é para mim (...) Mesmo que já ninguém me exclua, excluo-me eu, à partida. Conheço bem os meus limites. Aquilo a que posso aceder e o que me está vedado para sempre. Os aleijados são, como se diz dos diamantes, eternos.” É um arranque extraordinário, até porque retrata o gordo como um aleijado, como o grande enjeitado. Não é aleijado segundo as leis da natureza, mas segundo as leis da crueldade humana. Maria Luísa, personagem central de “A Gorda” é, no fundo, como Philip de “Servidão Humana”. Ter peso a mais é como ter um pé a menos; a barriga proeminente é uma característica percecionada como uma deformação equiparável a um pé boto. É assim que um gordo se sente perante a sociedade que o encara como um ser inferior, a sociedade que insiste em fazer da obesidade uma metáfora sobre falhas morais.

Na escola da Belle Époque inglesa, Philip é gozado e humilhado pelos outros rapazes, que não lhe perdoam o pé defeituoso; a piedade não é natural ao homem, tem de ser aprendida. No Portugal contemporâneo, Maria Luísa também é destratada como a badocha de serviço. Reparem, por favor, que estou a usar o presente do indicativo. Uso o presente devido ao tempo narrativo dos romances, Philip e Maria Luísa estão a sofrer neste momento. Mas há outra razão: utilizo o presente do indicativo porque o gordo é, nos dias que correm, o único ideal-tipo que pode ser abertamente gozado e humilhado em público. O que é espantoso. Vivemos no meio de uma barragem constante de indignação de grupos e minorias que recusam ser criticados ou parodiados. Do humor à literatura, há um policiamento permanente da linguagem que confunde duas coisas: uma coisa é combater preconceitos e ódios; outra coisa, bem diferente, é diabolizar críticas, perguntas difíceis e, sim, piadas sobre grupos, etnias, tribos, minorias ou maiorias.

No ano da graça de 2019, uma palavra — uma única palavra — é capaz de gerar acusações, boicotes e despedimentos. Não, não quero neste texto discutir a razão (ou a ausência dela) deste ambiente de censura e autocensura. Quero apenas salientar esta perplexidade: numa época que ‘proíbe’ a paródia e a crítica aos mais diversos grupos e minorias, os gordos continuam a ser um alvo fácil do escárnio, da paródia e até da diabolização. É como se os gordos formassem a única minoria sem direito ao véu protetor da indignação. Porque é que isto acontece? Porque é que, na sociedade da indignação e da hipersensibilidade, o fat shaming (humilhar o gordo) é uma constante? O que leva um dos grandes comediantes/apresentadores americanos, Bill Maher, a lançar uma fatwa ao gordo, defendendo abertamente o fat shaming? Se tivesse defendido o gay shaming ou black shaming ou jew shaming ou women shaming ou abortion shaming, a carreira de Maher teria acabado ali mesmo. Então, porque é que recebe aplausos quando lança os preconceitos mais preguiçosos sobre os gordos? Porque é que um comediante que recusa criticar ou parodiar atos e opiniões de algumas minorias é depois tão duro com a própria biologia (e não com opiniões ou atos) de outras pessoas?

Em resumo, porque é que o gordo está neste ângulo cego do politicamente correto? A minha tese é esta: o ódio derramado sobre o gordo é visto como uma virtude por muitas das narrativas ou ideologias do nosso tempo, o culto cego da meritocracia e o ambientalismo radical, por exemplo.







O naufrágio do livre arbítrio

Comecemos pelo culto exacerbado da meritocracia, que isola o livre arbítrio, colocando-o num vácuo onde só existe essa vontade pessoal, onde o mundo é a representação dessa vontade, onde não existem forças exteriores como a genética ou a pobreza. O discurso de Bill Maher é um bom exemplo desta ilusão: ele reduz a obesidade a uma mera inércia da vontade. É a ideia de que o gordo é aquela criatura anafada só porque não se esforça. Isto é um absurdo, como frisou de imediato James Corden numa resposta certeira a Maher. Bill Maher quis fazer da obesidade uma metáfora dos males da sociedade americana; acabou por fazer uma metáfora da sua fraca empatia. É aquilo que falta a esta meritocracia fria e árida que nos apascenta: empatia.

Há que tentar ver o mundo através dos olhos e do corpo de um gordo. Neste sentido, haverá poucas coisas mais ilustrativas do que as memórias de Hilary Mantel. Em “Giving Up the Ghost”, sentimos o naufrágio do livre arbítrio num oceano tempestuoso de fluxos hormonais; sentimos a genética a afogar a liberdade de escolha. A tiroide criou uma nova Hilary. Ela ainda sonhava com a sua velha magreza, o seu velho eu, mas, quando acordava, tinha de lidar com aquele avatar descomunal. A tiroide marcou a ferro quente o livre arbítrio de Hilary, tratou-a como gado sem direito à sua personalidade. Quer dizer, o livre arbítrio que permite a meritocracia (neste caso, o mérito seria emagrecer através de dietas e exercício) nada pode contra a biologia, contra o descontrolo hormonal. É uma questão médica, e não moral. “Quando engordas, ficas com uma nova personalidade”, ponto final. Comesse o que comesse, corresse o que corresse, o livre arbítrio de Hilary não podia travar o inchaço do corpo. A sua liberdade só podia atuar a jusante, e não a montante, ou seja, a sua pergunta não era “como posso travar este corpo?”, mas sim “o que fazer para viver e escrever com este corpo?”. A questão não era se ia mudar de corpo e personalidade, mas como ia mudar de corpo e personalidade. Pedir a Hilary Mantel para emagrecer é o mesmo que lhe pedir para mudar de cor de pele ou de orientação sexual. Ser magro é uma meta que está para lá do seu livre arbítrio, não é uma questão de vontade, é um facto biológico.



O ódio derramado sobre o gordo é visto como uma virtude por muitas das narrativas ou ideologias do nosso tempo, o culto cego da meritocracia e o ambientalismo radical, por exemplo.



Além do cerco da genética, não podemos esquecer o cerco da pobreza. A sensibilidade literária de George Orwell intuiu que o cansaço animal da pobreza anula quase por inteiro o livre arbítrio do pobre alquebrado. A ciência moderna está a confirmar esta intuição. Vejam na HBO o documentário “One Nation Under Stress”, de Sanjay Gupta, ou leiam na “Nautilus” o ensaio “Poverty is Like a Disease”, de Christian Cooper. São bons resumos daquilo que a ciência já apurou: a pobreza é uma condição que altera quimicamente o cérebro; e essa metamorfose química até pode passar de pai para filho pela via genética. Como é que isto se opera? O stresse constante causado pelas preocupações da pobreza soterra o livre arbítrio num fluxo permanente de ansiedade química que provoca uma implosão antikantiana; o cérebro fica entupido de stresse da mesma forma que uma artéria fica entupida de colesterol; pensar racionalmente sobre o futuro torna-se difícil; o cérebro exige gratificações imediatas, a começar na comida com sal, açúcar e gordura.

Não aceito a totalidade da tese de Cooper, isto é, não aceito que a liberdade de pensamento e de escolha do pobre fica totalmente danificada, isto é, não aceito a ideia da pobreza como doença terminal e insuperável. O pobre pode subir na vida através do trabalho e no esforço; o pobre pode lutar contra a obesidade. Não é impossível, nem sequer é implausível. Mas, sim, é tremendamente difícil. O livre arbítrio para um privilegiado das classes altas é um dado à partida. Para um descamisado, um negro do gueto ou do Jamaica ou um branco do parques de rulotes ou de um bairro clandestino, o livre arbítrio desobstruído é uma enorme conquista depois de muito esforço potenciado por uma autodisciplina de nível militar.

Nesta fase do argumento, muitos contra-argumentarão com o seguinte: mas não é evidente que há muitas pessoas gordas porque são preguiçosas? Sim, é verdade. Mas já não há direito à ociosidade? Mesmo que alguns corpos volumosos sejam de facto o resultado de modos de vida pachorrentos e gulosos, porque é que isso há de ser motivo de chacota ou censura? Porque é que se procura equivaler a ética à massa corporal? A gordura versus magreza não é um debate ético. O magro não é eticamente superior ao gordo, e vice-versa. O que nos define eticamente não está nem nas substâncias que comemos nem nas distâncias que corremos; está no respeito e na empatia que demonstramos pelos outros. Ademais, importa frisar outro ponto: porque é que ser um gordo ocioso não pode ser uma escolha pessoal (livre, consciente e responsabilizável) como tantas outras? Se todos os modos de vida passaram a ser aceitáveis, se até a poligamia ou zoofilia querem entrar no perímetro da legitimidade, porque é que um corpo volumoso fruto de um modo de vida ocioso tem de ser submetido à humilhação da praxe?

“A gordura não é imoral. Não há uma ligação entre a tua cintura e a tua ética”, diz Hilary Mantel. Mas a escritora britânica sabe que não é essa a visão da sociedade. Recorda, aliás, como o cristianismo não criou santos gordos. O santo é sempre uma esfinge enxuta, porque o santo passa pela purificação do jejum. O santo e o capitalista do século XXI, diga-se. Já repararam na imagem padrão do empreendedor do nosso século? É magríssimo, tal como um santo medieval. É magríssimo devido à sua devoção pela meritocracia que aplica à mente e ao corpo. É uma inversão curiosa na imagética do capitalismo.

No século passado, os velhos comunistas usavam o gordo para criticar o capitalismo. Nas caricaturas marxistas, o capitalista era sempre um gordo anafado e decadente que aparecia em claro contraste com os proletários austeros e enxutos, operários de corpos esculturais, silhuetas esculpidas por uma ética de trabalho inclemente que esmagaria a decadência do capitalismo.

Neste século, é o mundo capitalista que denigre o gordo. Na narrativa dos websummiters e afins, o empreendedor ou candidato a empreendedor é um jovem de corpo enxuto que surge em claro contraste com o white trash composto por pobres gordos que ficam para trás, porque não empreendem, porque desperdiçam os seus talentos. Nesta narrativa, pobreza é mesmo uma escolha, tal como a gordura; o white trash, caluniado por empreendedores de direita e por comediantes de esquerda como Maher, é obeso porque não se esforça. Não falo em white trash por acaso. Hoje em dia, o velho snobismo que os poderosos derramam sobre o pobre não pode ser tão explícito como no passado, mas não desapareceu; encontrou, isso sim, outras verbalizações. o fat shaming é uma delas. Não é por acaso que o branco pobre e gordo tem sido criticado e diabolizado; estes “deploráveis” não têm direito nem ao véu protetor do politicamente correto de esquerda nem ao véu da meritocracia da direita. Estão na carreira de tiro como alvo.

Num romance oitocentista como “Orgulho e Preconceito”, de Jane Austen, uma mulher de certa condição é criticada por estar demasiado bronzeada. O bronze era na época um sinal de trabalho rural e braçal, um trabalho vil e mecânico que manchava a alvura imprescindível da senhora. Hoje em dia, uma senhora de certa condição não tem de ser branquelas, mas tem de ser magra. Se repararem bem, os ginásios estão cheios de mulheres que já são magras; veem-se por ali pouquíssimas mulheres gordas. Isto porque o ginásio está para a sociedade meritocrática de hoje como o clube do chá estava para a sociedade aristocrática: um símbolo de status. Quem é realmente obeso, quem precisa mesmo de exercício físico sente-se ali como um pelintra num clube de cavalheiros. Ter peso a mais é como ter sangue azul a menos.






O gordo é portanto vítima de uma enorme perversão já deste século: o mérito, valor fundamental, foi transformado numa ideologia cega, meritocracia, que celebra o vitorioso e que despreza o (alegado) derrotado ou o (alegado) preguiçoso. E, quando a meritocracia se cruza com o culto do corpo, ficamos com uma imagem repetida ad nauseam: o gordo só é gordo porque é preguiçoso, porque não se mexe, porque não faz jogging, porque não faz natação ou danças de salão, porque não faz pilates ou ioga. O corpo volumoso é visto como a personificação da acédia. Os programas de TV que forçam os gordos a emagrecer através do exercício partem desta premissa: o gordo, ora essa!, é um mero preguiçoso que carece de um banho de ética de trabalho no ginásio. O gordo não pode ser virtuoso ou belo.

Na mesma onda, as modelos plus size são alvo de campanhas que recusam encontrar beleza em corpos voluptuosos. A internet é varrida por slogans como “being fat is not beautiful, it’s an excuse”, o que volta a expor as contradições do ar do tempo. Como é que a época da “diversidade” e da “diferença” não aceita a diferença das mulheres voluptuosas? Porquê? Até porque, em abono da verdade, é imperioso dizer que qualquer modelo plus size como Ashley Graham ou Candice Huffine é muitíssimo mais sensual do que os exércitos de magricelas que dominam a indústria da moda e do Instagram.

Na escrita e na televisão, Lena Dunham tem sido uma das vozes mais críticas deste ideal unidimensional de beleza feminina que destrói todos os dias o ego das mulheres reais, a começar nas mais volumosas. Quer no seu livro de memórias “Not that Kind of Girl” quer na série da HBO “Girls”, Dunham tem lutado para impor a normalidade da mulher real e, sim, gorda. O seu alter ego em “Girls”, Hannah Horvarth, é uma jovem mulher que mostra sem complexos o seu corpo, que está longe do ideal de beleza. Passa metade dos episódios em roupa interior. Não é exibicionismo. Ou melhor, “Girls” pretende exibir a normalidade dos corpos normais, pretende exibir a revolta das mortais contra as Calipsos.

A escrita e as personagens de Dunham são perfurantes e francas, e é essa franqueza desarmante que inquieta os leitores e espectadores de “Girls”. As pessoas assumem que ela devia esconder o corpo. Dunham vai contra essa assunção. Um corpo é um corpo e, como recorda Dom Rigoberto nos seus cadernos ou o mestre Fellini nos seus filmes, o erotismo humano não é o mesmo que pornografia centrada num único modelo estereotipado. Um corpo volumoso pode ser sensual. Tendo um corpo, digamos, heterodoxo, Lena Dunham pode ser tão ou mais sensual do que atrizes com o corpinho ortodoxo do costume, como Allison William (do elenco de “Girls”), que é bela e desinteressante ao mesmo tempo, aliás, é desinteressante porque tem uma beleza tão ortodoxa que até enjoa. De vez em quando, alguém faz esta pergunta a Lena Dunham: “Não acha que se está a expor em demasia?” A pergunta, que aparenta ser bondosa, é, na verdade, cruel. É cruel no seu paternalismo. A resposta de Dunham costuma ser qualquer coisa como isto: “Você não faz essa pergunta às atrizes boazonas do costume, pois não?” Claro que não. Ninguém pergunta a Jessica Biel se ela não acha que se está a expor em demasia quando aparece nua. O problema das pessoas não é a nudez, é a nudez de uma atriz que engorda e que recusa a edição de imagem.

No fundo, Lena Dunham é criticada por exibir o tal corpo “aleijado”. É como se o corpo de Lena causasse tanta repugnância como os corpos deformados de um filme macabro de Cronenberg ou Lynch. Aliás, é a própria cabeça de Dunham que incomoda. Muitas reações anti-Dunham são reações de quem está a criticar ou a injuriar uma cabeça alegadamente deformada. Quantos escritores ou escritores se atreveram a ver o mundo através de uma mulher gorda? Quantos nos deram um livro, filme ou série que nos force a ver o mundo através de uma pessoa gorda? Quantos? É isto que causa a polémica, tantas vezes inclemente, que envolve Lena Dunham. Ela força as pessoas a ver o mundo através do pária dos párias: a mulher gorda que não se cala, que não é passiva, que vai à luta, que pensa, que cria, que escreve, que não esconde a sua condição de “aleijada”.



Se até a poligamia ou zoofilia querem entrar no perímetro da legitimidade, porque é que um corpo volumoso fruto de um modo de vida ocioso tem de ser submetido à humilhação da praxe?



A par da meritocracia que vê o corpo gordo como objetificação do pecado da preguiça, temos de elencar o ambientalismo radical que vê “o gordo” como o grande vilão das alterações climáticas. É inacreditável a quantidade de pessoas que estabelece uma relação causal entre a “epidemia da obesidade” e o “aquecimento global”. Desde as mensagens de ódio boçal de ativistas verdes até às declarações de ministros, é fácil encontrar esta narrativa: o gordo é uma ameaça porque é o grande consumidor de recursos, o grande comedor das maléficas carnes e dos luciféricos derivados de leite.

Há uns anos, um conselheiro ambiental do Governo britânico, Sir Jonathan Porritt, dos Verdes, afirmou com todas as letras que as pessoas gordas estão a provocar as mudanças climáticas. Chegou ao ponto de sugerir que o Governo devia tomar medidas contra os hábitos das pessoas gordas, que deviam ser forçadas a emagrecer em nome do ambiente. É importante dizer nesta fase que não estou a exagerar ou a fazer uma caricatura. Sir Porritt disse mesmo isto, até porque existem “estudos científicos” que atestam esta tese. Ou seja, em nome de uma meta vista como sacrossanta (travar as alterações climáticas), os “cientistas” e os “ativistas” humilham seres humanos concretos; os gordos são aqui desumanizados, perdem o direito à sua individualidade sagrada e são agrupados num cliché que os desumaniza à partida.

Como se vê, a gula do gordo é aqui a grande inimiga da natureza e da vida selvagem. De resto, o animalismo radical pode chegar ao ponto de colocar o gordo humano num nível inferior aos animais. Há uns anos, propagandistas radicais espalharam o seguinte flyer pelo metro de Londres: “Não gostamos que o nome do belo porco seja usado como insulto. Tu não és um porco, és um ser humano gordo e horrível.” Espantoso, não é? Ou talvez não. Os animalistas como o líder do PAN têm dito ao que vêm. André Silva garante que um cão ou chimpanzé tem mais características humanas do que um ser humano em coma.
Aqueles que legitimam o seu fat shaming através do pecado ambiental esquecem uma questão: antes de ser um hábito individual, muitas vezes imposto pela pobreza, a gula é alimentada pelos gigantes da comida rápida. O hambúrguer ensopado em queijo derretido, antes de ser um pecado de quem o come, é um pecado de quem o produz. Quer dizer, as campanhas de censura social não devem ser lançadas sobre os gordos (os consumidores), mas sobre os fabricantes de comida rápida saturada de gordura, sal e açúcar. Se calhar, muitos bens alimentares deviam sofrer o tratamento dos cigarros, isto é, as suas embalagens deviam mostrar graficamente os efeitos que têm na saúde.


Seja como for, é curioso verificar de novo as contradições do ar do tempo. Esta é uma época que procura ser pós-religiosa, mas, no entanto, encontramos facilmente o pior da religiosidade, o impulso farisaico, a punição impiedosa de pecados. Uns querem ver no gordo o pecado da acédia, outros querem ver no gordo o pecado da gula. O gordo é a conveniente antropomorfização do pecado, o pecado torna-se uma pessoa concreta e esmurrável, uma pessoa que está ali para ser esmurrada pela fúria virtuosa dos justos.










“Já sou um dos vossos?”

Termino como comecei. Com uma personagem inesquecível, Lorenz. “Lorenz estava já abatido pelo esforço da corrida (...) a cara tinha muita gordura e quando se lhe dava uma chapada na bochecha, ela abanava comicamente (...) Os olhos assumiam uma expressão de quem pede misericórdia, como se quisesse desculpar-se pelo seu tamanho vergonhoso (...) Assim que readquiriu o fôlego, olhou em volta para todos nós com olhos que pareciam suplicar para que pudesse ser, por fim, um de nós. Virámos o olhar (...) tornara-se cada vez mais feminino: desenvolvera seios e os rapazes e os filhos de Isager haviam-no, certa vez, levado até à Cauda e fizeram-no despir-se para que pudessem ver como era uma rapariga (...) E voltou a lançar-nos o olhar que nos perguntava: Já sou um dos vossos?”

Lorenz é o gordo de “Nós, os Náufragos”, romance de Carsten Jensen, que é notável da descrição da crueldade de crianças e jovens sobre os “aleijados”. Lorenz é um cabide onde todos nós podemos pendurar as nossas memórias relativas aos gordos. No meu tempo, “o gordo” ainda era como Lorenz. Havia uma mão-cheia deles. E só tinham uma utilidade no pátio da escola ou na rua: ir para onde mais ninguém queria ir, a baliza, defender aquele abismo pintado no chão. “O gordo vai à baliza”, era uma das frases-bordão. Se quisessem jogar, e muitos queriam, muitos davam tudo para pertencer ao grupo, os gordos só podiam ficar naquela posição de sacrifício, o guarda-redes, que mais ninguém queria. Sem surpresa, acabavam por funcionar como bodes expiatórios das derrotas. O gordo é um frangueiro! Ó badocha, vais apanhar! Era assim. Parece que continua a ser assim. Vivemos numa época que, na procura de extirpar preconceitos idiotas, proíbe críticas justas e piadas necessárias sobre grupos e minorias. Todas, não. A tribo opulenta, os gordos, é a única que pode ser alvo de críticas, piadas e, acima de tudo, de muitos preconceitos. O gordo continua a ir à baliza.


E-Revista Expresso, 1 de novembro de 2019



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