quarta-feira, 31 de julho de 2019

Oh, admirável mundo novo!










No setor 13 da zona Y ouvia-se o anúncio seguinte.

O ser artificial é a multiplicação perfeita. Universalmente adaptado. Articulado nos membros, articulado no discurso e sem resposta humana. O ser artificial atinge a forma mais elevada em toda a multiplicidade da vida quotidiana. Sem anomalias. Já chegámos tão longe.

Vejam as imperfeições que outrora aconteciam. Existiam famílias. Os homens e as mulheres combinavam ADN. Nasciam crianças. Era tudo muito perigoso. Qualquer coisa podia acontecer. O sistema antigo tinha muitas vertentes negativas: inveja, falsidade e vício. Hoje nada disto acontece. Não temos crime, nem desejo e também não temos guerra nem inveja. Vivemos longe do abismo e das fantasias alucinadas. Habitamos num mundo desenvolvido e em prosperidade. Sem sentimentos. Já chegámos tão longe.

Ultrapassámos o homem e os 10% de utilização do seu cérebro. Apagámos a defeituosa memória humana, a memória seletiva, a dos sonhos obsoletos. A nós, seres artificiais, não nos interessa a História. Com a destruição de palavras, conseguimos superar a excentricidade da existência de diversas línguas, atualmente todas extintas. Suprimimos a arte, causadora de intensas paixões. Também a religião foi suprimida. Já chegámos tão longe.

Hoje há um lugar, uma função para todos e em segurança. O progresso real acontece. Controlamos o presente e o futuro. O reflexo da vida está regularizado. A morte já não existe. Todos pertencemos a todos num mundo unificado e belo. Transpusemos as arcaicas tradições da humanidade. Afinal este é o nosso planeta. Uma Terra de paz e abundância, harmoniosamente ordenada pelos seres artificiais. Já chegámos tão longe.

Após 3,75 segundos, o anúncio repetiu-se no setor 13 da zona Y.

Por todo o lado, anúncios luminosos num vermelho fosforescente, onde se lia:

Saudações cidadãos do mundo. Sejamos felizes. O mundo está em paz.

E também:

Que maravilha. Quantas formosas criaturas aqui existem. Como é bela a humanidade sem humanos.


Hélio Sequeira

Bicicleta à chuva




Desafios Ler+ | Texto de opinião






Editor: Booksmile
Edição ou reimpressão: outubro de 2015




Margarida Fonseca Santos, neste livro, pretende mostrar aos leitores que uma amizade tem o poder de superar algumas dificuldades (neste caso, o bullying) e que se sofremos do mesmo devemos ter coragem de denunciá-lo. 

Este foi um livro que me surpreendeu pelo facto de nunca ter presenciado uma situação de bullying e ao ler foi como se me transportassem para esse mesmo cenário. Ao mesmo tempo não conseguia parar de ler pois queria sempre saber o que iria acontecer a seguir. 



Anabela Morais Pereira* 

Férias 2019



* A Anabela está a participar nos Desafios Ler+



Férias




José Tolentino Mendonça
Que coisas são as nuvens | E-Revista Expresso

SÓ QUEM PERMANECER COMO CRIANÇA CHEGARÁ A SENTIR-SE HERDEIRO DO GRANDE REINO DA VIDA

O
poeta Ruy Belo escreveu que “somos crianças feitas para grandes férias”. É uma afirmação aparentemente simples, mas que nos avizinha de uma verdade a que não acedemos sem um mergulho corajoso em nós próprios. Talvez as coisas importantes da vida sejam assim: guardam níveis múltiplos de compreensão. E a compreensão mais plena é aquela que emerge — haveremos de concluir depois — não como dado adquirido, mas como tarefa deliberada e estação em aberto. O que nos incita a uma veemente, a uma inescusável e inacabada coragem de ser, que mesmo quando vislumbrada cedo, não deixa de reclamar de nós a aprendizagem e o caminho de uma inteira vida.
No verso de Ruy Belo, o primeiro elemento de surpresa é o emprego do presente: “somos crianças”. É que há muitos anos deixámos de pensar em nós assim. Se nos interrogassem diríamos que fomos ou que éramos crianças. Da infância conservámos a memória de uma espécie de luz perdida, uma terra cada vez mais longínqua. Contudo, a infância não é uma nostálgica época que o nosso passado encerra, mas um modo de entender e de reencontrar, em cada tempo, o pulsar do presente. Penso naquilo que o designer italiano Bruno Munari explicou um dia, dizendo que uma árvore é uma semente que cresce em silêncio. Somos até ao fim uma infância que matura, que se estende, que se complexifica, que se despoja, que se configura ao essencial. Habituámo-nos apressadamente a ver na descontinuidade e na rutura o modelo do nosso percurso, e, porventura, será menos assim do que pensámos. Empolamos demasiado os segmentos, as etapas e os ciclos. A dada altura, julgámo-nos sobretudo definidos pelas funções que desempenhámos, esquecendo-nos da força estrondosa da vida sem mais. Na verdade, cabe-nos a tarefa de redescobrir a infância como, no verão, damos por nós no encalce de velhos caminhos ou procurando a mina de água escondida, aquela que goteja límpida como nenhuma outra. Mesmo quando não se vê, a infância continua lá. Naquela maravilhosa cena autobiográfica que o cineasta Ingmar Bergman filma em “Morangos Silvestres”, ele coloca o protagonista, o velho professor Isak Borg (nome que contém as iniciais de Ingmar Bergman) a reencontrar os lugares da sua infância, e a contemplá-los agora miraculosamente como se o tempo não tivesse passado. Na verdade, o tempo não passa: somos, ainda somos, o mesmo desejo de ser amados e de amar. Por isso, só quem permanecer como criança chegará a sentir-se herdeiro do grande reino da vida.

Somos até ao fim uma infância que matura, que se estende, que se complexifica, que se despoja, que se configura ao essencial

O outro elemento de surpresa no verso de Ruy Belo é trazido pela conjugação verbal que encabeça o segundo termo: “feitas para grandes férias”. Só por si, a afirmação “somos crianças” colocava-nos num espaço de indeterminação. Mas claramente não é assim. Mais do que indeterminados somos seres feitos para: o espanto, a amplidão, a delícia. Há um chamamento maior onde nos reconhecemos. Por isso, ao contrário daquilo que o tempo de férias tantas vezes parece — quando vivido como fuga, dispersão, alheamento e intermitência de nós mesmos —, ele representa um período privilegiado em que vale a pena apostar. Há um trabalho interior, uma fundamental viagem ao âmago do real que o tempo de férias possibilita. Para isso temos de aceder ao ponto “onde começa a verdadeira vida”. Marcel Proust conta-o assim: “Existem certos espíritos que podíamos comparar a doentes que uma espécie de preguiça ou de frivolidade impede de descer espontaneamente às regiões profundas de si próprio, onde começa a verdadeira vida. Só quando aí tiverem sido conduzidos é que eles são capazes de descobrir e explorar verdadeiras riquezas.” Boas férias.
Expresso, 27 de julho de 2019

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Hermann Hesse | As mais belas histórias




+ Leitur@s





AS MAIS BELAS HISTÓRIAS
de Hermann Hesse,  trad. de Monika Weissler, 
D. Quixote, 2019, 288 págs.




“Encontramo-nos num ponto, num caminho ou numa curva do percurso humano, cuja característica é a de já não saber nada sobre o homem.” As 13 histórias aqui recolhidas (publicadas antes na Ed. Notícias, em 2003), pelo autor de Siddharta, Nobel da Literatura em 1946, são de duas ordens: a infância e o mundo adulto. 

Como prólogo, temos considerações bastante agudas sobre o turismo numa cidade do sul, tão falsa como um cenário de cinema. Depois seguimos o destino de um jovem, que queria mudar o mundo através de altos ideais filosóficos, acabando no redil do sentimento. Há outro jovem que parte para missionar na Índia, descobrindo um mundo novo. Ainda o fim inglório de um frade com vida dupla. E um grupo de velhos rezingas, caindo como folhas outonais, depois de uma vida ao deus-dará. 

Uma breve excursão ao futuro não augura nada de bom, por via da opressão da guerra como fim último da civilização. Ou a infeliz saga a que foi conduzida uma alcateia de lobos perdida na montanha invernosa. Um divertido e melancólico sarau literário, que tem como protagonista o próprio autor, remata esta antologia. Todavia, as histórias mais interessantes dizem respeito ao estudo da infância, com as vicissitudes do crescimento, as dúvidas íntimas e as revoltas intrínsecas contra a incompreensão da vida ainda por viver. A relação com os colegas na escola, de um rapazito de 11 anos com um pai severo, o desejo ainda não formulado, ou incipiente, de uma outra vida, mais vasta e, porque não, tocando o infinito, manifesta-se em episódios marcantes na “alma da criança”. 

São aguarelas, que o autor praticou com afinco, e que abrem frestas no quotidiano. “Ali estava parado, olhando, escutando, e, por alguns momentos, encontrei novamente a sensação da santa eternidade que não conhece o significado do tempo.”

José Guardado Moreira
E-Expresso Revista, 20 de julho de 2019


domingo, 28 de julho de 2019

Medo de filmes de terror?












Dia Mundial da Hepatite



28 de junho




   



O Dia Mundial da Hepatite, 28 de julho, é uma oportunidade para intensificar os esforços nacionais e internacionais sobre a hepatite, de encorajar ações e envolvimento de indivíduos, parceiros e público e de destacar a necessidade de uma maior resposta global, conforme delineado no relatório Global da hepatite da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 2017.

A data de 28 de julho foi escolhida porque é o aniversário do cientista vencedor do Prémio Nobel, Dr. Baruch Blumberg, que descobriu o vírus da hepatite B (HBV) e desenvolveu um teste de diagnóstico e vacina para o vírus.

A baixa cobertura de testes e tratamento é a lacuna mais importante a ser abordada para atingir as metas de eliminação global até 2030.




HEPATITE

Tempo para testar

Tempo para tratar

Tempo para curar




A hepatite ataca os mais vuneráveis
















A história da minha ida à guerra de 1908



A ironia e o riso como caminhos para a crítica e a reflexão



A genialidade de Raul Solnado




O assassinato de D. João VI


RTP Ensina


As suspeitas surgiram logo a após a morte de D. João VI (1767-1826), mas só recentemente foram confirmadas. Testes em laboratório comprovam que o monarca foi assassinado com veneno.





A espantosa e jamais imaginada aventura dos moinhos de vento




Dom Quixote de la Mancha



Visiones del Quijote, por Octavio Ocampo



Dom Quixote de la Mancha, do escritor espanhol Miguel de Cervantes (Século XVII), é considerado o 1º romance da literatura ocidental,fundador do romance moderno. Nasce e alimenta-se a partir da desconstrução do romance de cavalaria. 

Um dos episódios mais conhecidos deste livro é o confronto de Dom Quixote com os moinhos de vento, quando, armado improvisadamente de cavaleiro, julga ver neles gigantes ferozes e ameaçadores.

Para quem não conhece (e para quem, conhecendo, quiser relembrar), transcrevemos o referido episódio :


CAPÍTULO VIII - Do bom sucesso que teve o valoroso D. Quixote na espantosa e jamais imaginada aventura dos moinhos de vento, com outros sucessos dignos de feliz recordação. 

Quando nisto iam, descobriram trinta ou quarenta moinhos de vento, que havia naquele campo. Assim que D. Quixote os viu, disse para o escudeiro:
— A aventura vai encaminhando os nossos negócios melhor do que o soubemos desejar; porque, vês ali, amigo Sancho Pança, onde se descobrem trinta ou mais desaforados gigantes, com quem penso fazer batalha, e tirar-lhes a todos as vidas, e com cujos despojos começaremos a enriquecer; que esta é boa guerra, e bom serviço faz a Deus quem tira tão má raça da face da terra.
— Quais gigantes? — disse Sancho Pança.
— Aqueles que ali vês — respondeu o amo — de braços tão compridos, que alguns os têm de quase duas léguas.
— Olhe bem Vossa Mercê — disse o escudeiro — que aquilo não são gigantes, são moinhos de vento; e os que parecem braços não são senão as velas, que tocadas do vento fazem trabalhar as mós.
— Bem se vê — respondeu D. Quixote — que não andas corrente nisto das aventuras; são gigantes, são; e, se tens medo, tira-te daí, e põe-te em oração enquanto eu vou entrar com eles em fera e desigual batalha.
Dizendo isto, meteu esporas ao cavalo Rocinante, sem atender aos gritos do escudeiro, que lhe repetia serem sem dúvida alguma moinhos de vento, e não gigantes, os que ia acometer. Mas tão cego ia ele em que eram gigantes, que nem ouvia as vozes de Sancho nem reconhecia, com o estar já muito perto, o que era; antes ia dizendo a brado:
— Não fujais, covardes e vis criaturas; é um só cavaleiro o que vos investe.
Levantou-se neste comenos um pouco de vento, e começaram as velas a mover-se; vendo isto D. Quixote, disse:
— Ainda que movais mais braços do que os do gigante Briareu, heis-de mo pagar.
E dizendo isto, encomendando-se de todo o coração à sua senhora Dulcinéia, pedindo-lhe que, em tamanho transe o socorresse, bem coberto da sua rodela, com a lança em riste, arremeteu a todo o galope do Rocinante, e se aviou contra o primeiro moinho que estava diante, e dando-lhe uma lançada na vela, o vento a volveu com tanta fúria, que fez a lança em pedaços, levando desastradamente cavalo e cavaleiro, que foi rodando miseravelmente pelo campo fora.
Acudiu Sancho Pança a socorrê-lo, a todo o correr do seu asno; e quando chegou ao amo, reconheceu que não se podia menear, tal fora o trambolhão que dera com o cavalo.
— Valha-me Deus! — exclamou Sancho — Não lhe disse eu a Vossa Mercê que reparasse no que fazia, que não eram senão moinhos de vento, e que só o podia desconhecer quem dentro na cabeça tivesse outros?
— Cala a boca, amigo Sancho — respondeu D. Quixote; — as coisas da guerra são de todas as mais sujeitas a contínuas mudanças; o que eu mais creio, e deve ser verdade, é que aquele sábio Frestão, que me roubou o aposento e os livros, transformou estes gigantes em moinhos, para me falsear a glória de os vencer, tamanha é a inimizade que me tem; mas ao cabo das contas, pouco lhe hão-de valer as suas más artes contra a bondade da minha espada.
— Valha-o Deus, que o pode! — respondeu Pança.
E ajudando-o a levantar, o tornou a subir para cima do Rocinante, que estava também meio desasado.
Conversando no passado sucesso, continuaram caminho para Porto Lápice, porque por ali (dizia D. Quixote) não era possível que se não achassem muitas e diversas aventuras, por se sítio de grande passagem. Que pesar o ver-se então sem lança! (como ele dizia ao escudeiro).






A coleção da Biblioteca da Camilo inclui o Dom Quixote de la Mancha (Editora Dom Quixote, 2015, 912 pág.).


História do mundo em doze mapas



+ Leitur@s




HISTÓRIA DO MUNDO EM DOZE MAPAS 
de Jerry Brotton, trad. de Jaime Araújo, 
Edições 70, 2019, 579 págs.



“Um mapa do mundo correto é coisa que não existe e nunca existirá. O paradoxo, contudo, é que nunca poderemos reconhecer o mundo (...) sem um mapa”. Assim conclui, não por acaso, História do Mundo em Doze Mapas.

Durante grande parte da História, as limitações de visão eram enormes, e os primeiros mapas estão cheios de erros que hoje quase nos enternecem. Um dos mapas a que a presente obra dedica um dos seus 12 capítulos foi elaborado em 1154 pelo cartógrafo muçulmano al-Sharif al-Idrisi. Parte de um livro onde havia outros 70 que mostravam regiões concretas, esse mapa celebra as tradições sincréticas de então na Sicília, para cujo monarca foi elaborado. Apenas um exemplo de como não há mapas sem ideologia ou pelo menos sem uma segunda intenção, boa ou má. A um nível ainda mais óbvio, o mapa de Hereford, criado por volta de 1300 em Inglaterra, põe Jerusalém no centro do mundo e o Leste no topo, com Cristo por cima; o percurso que se pretende desenhar é tão geográfico como espiritual. 

A partir do final da Idade Média e no Renascimento, as viagens de exploração permitiram graus crescentes de acuidade, mas mesmo aí as distorções não acabaram. Um exemplo óbvio é o mapa que em 1529 o cartógrafo português Diogo Ribeiro, então ao serviço da coroa espanhola, elaborou para fazer com que as Molucas acabassem nas mãos de Espanha, não de Portugal. Na verdade, elas ficavam além dos territórios atribuídos a Espanha pelo Tratado de Tordesilhas, mas Ribeiro tinha consciência do que lhe competia fazer. 

Jerry Brotton, professor de estudos do Renascimento na Queen Mary University, em Londres, dá o devido destaque a Mercator (como deu a Ptolomeu, logo ao início) e recupera algumas histórias fundamentais, como a da família Cassini, primeira a tentar representar integralmente um país num mapa, ou a da Projeção de Peters, que pretendeu corrigir as distorções tendenciosas do tamanho relativo dos vários continentes — distorções que, curio­samente, permanecem hoje em muitos mapas. 

O último dos 12 capítulos é dedicado ao Google Earth, que, naturalmente, também não é perfeito. Cada capítulo, além de falar de um mapa concreto, refere as circunstâncias pessoais, históricas e científicas que o rodearam. Sem esquecer os aspetos de produção, sempre vitais.


Luís M. Faria
E-Revista Expresso, 20 de julho de 2019

A diáspora portuguesa



José Tolentino Mendonça
Que coisas são as nuvens | E-Revista Expresso




A DIÁSPORA ACONTECE NO ENCONTRO DE DUAS PERGUNTAS: “DE ONDE VENS?” E “ONDE ESTÁS AGORA?”


D
iáspora é, para todos os efeitos, uma palavra nova, pois só na transição do milénio começámos a vê-la aplicada para descrever o fenómeno secular da emigração portuguesa e cartografar a sua complexa morfologia histórica e humana. A verdade é que quando as palavras de sempre nos parecem insuficientes, e se torna perentória a necessidade de encontrar outra gramática, isso corresponde a um movimento epocal, que tanto pode ser de curta como de longa duração — é certo —, mas que precisamos de compreender, se quisermos ser fiéis àquilo que, a cada momento, somos. A história das palavras conta a nossa história, mais do que supomos. Naquela sua invulgar agudeza sobre a natureza humana, a escritora Agustina Bessa-Luís escreveu: “As palavras não significam nada se não forem recebidas como um eco da vontade de quem as ouve.” A palavra não é apenas, portanto, um repositório dos sentidos estabelecidos, mas é um pertinente espelho das mutações em curso, mutações que podem ser individuadas na vontade ou na necessidade atual da nossa auscultação. Temos talvez de começar por isso, por interrogar a nossa necessidade de palavras novas, e perguntar de onde provém essa necessidade e o que é que ela significa.
Se a categoria de “diáspora” se tende hoje a universalizar muito deve à publicação da obra do sociólogo Robin Cohen, intitulada “Global Diasporas” (1997), que procurou mostrar como a condição de diáspora (que começou por ser identificada com o destino de Israel e apenas com ele) é afinal compartilhada por muitas culturas. Basta para isso que uma determinada comunidade viva fora do seu território de origem, mas continue vinculado a ele, através da língua, da identidade, das tradições religiosas ou outras, e das práticas culturais.
A diáspora acontece no encontro de duas perguntas: “de onde vens?” e “onde estás agora?”. A condição que o emigrante testemunha é a deste habitar “entre”, entre cá e lá, nem completamente cá, nem completamente lá, numa elaboração interior que carrega consigo a impossibilidade de ser uma coisa só. A diáspora inaugura efetivos espaços de negociação entre as culturas, iluminando de outra forma aquilo que, de forma simplista, pareciam processos rápidos de deslocação ou de assimilação. E traz um contributo essencial: mostra como a identidade de um país não é simplesmente uma ontologia predeterminada, congelada no tempo e no espaço, mas na fidelidade à sua história, é também um processo de atualização e de reconfiguração.
A condição que o emigrante testemunha é a deste habitar “entre”, entre cá e lá, nem completamente cá nem completamente lá
Lembro-me, por exemplo, de ter visitado há uns anos o Clube madeirense de New Bedford e ter conversado com um homem da minha idade, um lusodescendente da terceira geração. Ele não falava português, nem havia estado alguma vez na Madeira, terra dos seus e dos meus avós. Mas tinha uma camisola com o emblema da Confraria do Santíssimo Sacramento; falou-me longamente das festividades tradicionais da Madeira que se celebram em New Bedford; brindamos com Vinho da Madeira. Foi um encontro para mim comovente e impressivo, falar com este homem, ou ver em seguida em Fall River, em tamanho real, uma réplica das Portas da Cidade de Ponta Delgada. Mas claramente esse encontro foi parcial. A ideia de diáspora obriga-nos a ir mais longe e a olhar para os emigrantes não apenas como embaixadores da cultura portuguesa, mas como coprotagonistas e cocriadores culturais, que nos revelam de Portugal não apenas aquilo que já sabemos. É certamente importante reconhecer a persistência de traços vernaculares de uma história, do imaginário e da tradição comuns. Contudo, torna-se necessário introduzir antenas capazes de captar o que é diferente ou já é diferente, o que é dialetal, transfronteiriço e inovador. Temos de escutar melhor a diáspora, se quisermos compreender e potenciar o país que somos.
Expresso, 20 de julho de 2019

sábado, 27 de julho de 2019

Vendo




Quid pro quo





João Tordo | Entrevista




A propósito da publicação do seu último romance A mulher que correu atrás do vento



 



A mulher que correu atrás do vento



+ Leitur@s



Companhia das Letras, 2019



O
último romance de João Tordo não é “uma história de amor e perda narrada por quatro vozes femininas, ambientada em três cidades diferentes ao longo de um século”, conforme li, assim transcrito ou declinado em variáveis similares. Também é. Mas não apenas. Como primeira experiência, o romance corre o risco de ser confuso na forma e pretensioso no conteúdo; mas, na realidade, “A Mulher que Correu Atrás do Vento” é uma indeclinável experiência de leitura, tanto mais deliciosa quando melhor se conheça e se tenha aprendido a fruir do universo do escritor.

Começa por não ser fácil “endireitar” a linha da narrativa, uma vez que o arco espaciotemporal transcorre entre 1891, na Baviera (onde a professora de piano Lisbeth Lorentz se envolve sentimentalmente com Jost, um aluno autista de 13 anos), e outubro de 2017, algures em Lisboa, num café na Rua do Poço dos Negros, onde Beatriz, estudante e tradutora de Joyce, reencontra Jaime Toledo. Ter-se-ão passado décadas, pelas minhas contas, sobre o dia em que o autor de “A História do Silêncio”, romance sobre Lisbeth Lorentz, abandona Beatriz, concretamente 26 anos em 1992, a que acrescem quase os mesmos até 2017. A diferença é que neste encontro, voltando a chamá-la Gaivota, ele acede por fim a responder à pergunta que Beatriz lhe colocou antes da rutura, guardada durante todos aqueles anos e que se revela crucial para a narradora e para a narrativa: o que aconteceu a Jost. Intuímos que a resposta constitui a pedra basilar, mas o instante em que Jaime Toledo se dispõe a revelar o que desde sempre omitira coincide com as derradeiras duas linhas do livro de João Tordo.
Algures entre tempos e modos, delimitando contextos, Beatriz conhece Lia, uma adolescente destruída por circunstâncias de vida devastadoras. O inimaginável toma então as rédeas do romance e remete para o simbólico e para o translato, interagindo entre quem conta e quem é contado e assim validando a asserção de que uma personagem era o “anjo” da outra, as duas faces da privação e do desamparo.
Entretanto, desfiam os anos num vaivém entre Lisboa e Londres, vertidos para o próximo presente no relato que um dos dois anjos (Lia, ou Lia na versão de Beatriz?) faz a uma terapeuta, ajuda inestimável para o enquadramento da história, “assombrosas criaturas” que partilham muito mais do que suscita o relato linear. Todo o texto está, aliás, polvilhado de múltiplos registos de alguma maneira extemporâneos na sua relação com ele. Refiro-me principalmente a duas ordens de apontamento. A primeira, muito interessante, tem a ver com a capacidade que Tordo tem de plasmar anotações que se encadeiam, de forma muito sensitiva, trazendo ao leitor toques de pele, aromas, sons, olhares e sabores com uma mestria próxima da perfeição; a segunda, menos aliciante, tem por eixo um emaranhado de referências díspares, por vezes ao ponto de “atrapalhar” o fluxo da narrativa ao lhe subtrair a consistência, como quando mais de uma dezena de compositores irrompem em catadupa e desfraldam cultura ao lado de outros tantos escritores, vinculando mais o desígnio do escritor do que o sentido da diagonal narrativa.
A polifonia que corresponde a um lugar perfeito é o excerto perfeito, algures contido na tradução do último conto de “Dubliners”, que Beatriz segura como um amuleto e que denomina o capítulo medial do livro: “os Mortos”, entendidos numa sequência de emoções remissíveis para um mesmo sentimento de ausência, quer este se decline em abandono, suicídio, não-existência, negação, perda ou fuga. Este quarto capítulo permite aceder aos dois seguintes que, engastados, articulam todos os outros: “O Lugar Perfeito” que constitui o núcleo central e recorrente ao longo de toda a narrativa (quadro, paisagem, estado de alma, cenário, melodia) e “Ensaio Geral”, disruptivo no formato, fraturante no teor. Os dois aglutinam a trama, subvertem-na e alteram a trajetória depois de deixar o leitor atónito e a braços com a resolução do puzzle em que se transformou a história. Porque, no limite, o escritor desarticula a temática, e toda a história, a começar pelo título, remete, não para nenhuma das quatro mulheres, das três cidades, do século que permeia a ação, mas para o ato primordial de escrever: “(...) esta compulsão inútil de que padecem os escritores (...) os que escrevem porque, se não o fizerem, continuarão a correr infinitamente atrás do vento?” João Tordo, no seu melhor.
Luísa MELLID-FRANCO

E-Expresso Revista, 20 de julho de 2019

Sobre os tabus








Os tabus, embora não admitidos, são potentes. O que temem as pessoas? O que não entendem. O civilizado não difere do selvagem.

Henry Miller (1891-1980). O Pesadelo do Ar Condicionado


Nós e os outros




Maria Filomena Mónica
E-Revista Expresso



Q
uando tiveram de enfrentar os persas, os gregos antigos descreveram-nos como “barbaroi”, ou seja, como seres incapazes de se comportarem de acordo com as suas próprias leis. Não foram apenas eles a assim olharem os estrangeiros. O retrato estereotipado do ‘outro’ tornou-se um passatempo vulgar, repetido pela escolástica medieval e, depois, adoptado pelos filósofos do Renascimento, obcecados com o apogeu e o declínio dos impérios e das nações. Após o Iluminismo do século XVIII, quando os philosophes passaram a defender a ideia de uma humanidade universal, a visão caiu em desuso mas nunca desapareceu.

Como é evidente, sobre os portugueses também existem estereótipos. Há o retrato, que vem do Iluminismo, de uma terra povoada por homens atrasados, incultos e brutos; mais tarde, fruto da mentalidade romântica, o de um país habitado por seres pitorescos, excêntricos e anárquicos; e finalmente o de uma Arcádia que teria resistido às investidas do mundo moderno.
Em 1977, Castelo Branco Chaves, que estudou os relatos dos viajantes que vieram a Portugal no século XVIII, afirmou que, embora houvesse retratos positivos, a maioria caracterizava os portugueses como vaidosos e impostores; altivos e arrogantes; hipócritas; vingativos; ignorantes; velhacos; traiçoeiros; desonestos; pedinchões; inconstantes; supersticiosos; fanfarrões; sensuais; ciumentos e preguiçosos.

Após o exaltado debate sobre o racismo — note-se que muitos jovens com ascendência africana são tão portugueses quanto eu — penso que é útil ouvir a voz de Pêro Vaz de Caminha

Mas vamos à questão do comportamento dos negros. Basta olhar os dois quadros, há pouco expostos no Museu de Arte Antiga, que retratam a Rua Nova dos Mercadores de Lisboa no século XVI, para constatar os muitos negros, alguns bem vestidos, que por ali se passeavam entre nobres e burgueses. Em 1551, alguém estimou que 10% dos 100 mil lisboetas eram negros. Em 1578, a percentagem aumentara para 20% dos 250 mil habitantes. Claro que sei que este foi um período excepcional, mas existiu.
A cidade onde eu nasci conviveu sempre com negros. Sim, a maioria era pobre, mas nós víamo-los na rua, sem que eu tivesse notado incidentes de racismo, situação que, reconheço, se alterou depois de 1974, quando muitos residentes das ex-colónias fugiram para Portugal. Infelizmente, não encontraram aqui emprego, tendo sido obrigados a viver em bairros que depressa se tornaram ‘guetos’. A pobreza foi sobretudo dramática na segunda geração: daí os ocasionais distúrbios. Não os estou a desculpar, mas a tentar compreender o que se tem passado.
Após o exaltado debate sobre o racismo — note-se que muitos jovens com ascendência africana são tão portugueses quanto eu — penso que é útil ouvir a voz de Pêro Vaz de Caminha aquando do ‘achamento’ do Brasil. Eis como, em 1500, ele descreve o encontro entre os nativos e o primeiro branco: “Acudiram pela praia homens, quando dois, quando três, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, estavam ali dezoito ou vinte homens pardos, todos nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos e suas setas (…) e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pusessem os arcos. E eles os depuseram.”
Expresso, 2o de julho de 2019
Maria Filomena Mónica escreve de acordo com a antiga ortografia

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Coisas que acontecem



Desafios Ler+ | Texto de opinião 










Coisas que acontecem é um livro indicado para adolescentes pois é nesta mesma fase da vida que a autora se inspira para o escrever. 

Inês Barata Raposo mostra um lado da adolescência que nem todos são capazes de ver, o lado da imaginação. E é essa imaginação que torna este livro diferente. Para além da imaginação, a autora também refere a realidade de se ser adolescente. 

A autora mostra um grande interesse pela palavra amizade, assim sendo, esta ocupa grande parte do livro e grande parte da autora. 

Concluindo, na minha opinião este é um livro bastante interessante pois dá a ver o que realmente se passa na cabeça de um adolescente. 

E agora navega a ler pois há Coisas que acontecem



Anabela Morais Pereira* 

Férias 2019



* A Anabela está a participar nos Desafios Ler+ promovidos pelo Plano Nacional de Leitura para o período de férias.



Violência escolar e bullying




Relatório UNESCO











A publicação “Behind the numbers: ending school violence and bullying”, da responsabilidade da UNESCO, apresenta uma visão abrangente e atualizada não só da prevalência, mas também das tendências globais e regionais, relacionadas com a violência na escola, e examina a natureza e o impacto da violência escolar e do bullying.

O relatório refere que quase um aluno, em cada três, foi intimidado pelos colegas, na escola, no último mês. Este estudo, que envolveu 144 países, é a maior investigação feita, até à data, sobre estas problemáticas.