sábado, 27 de julho de 2019

Nós e os outros




Maria Filomena Mónica
E-Revista Expresso



Q
uando tiveram de enfrentar os persas, os gregos antigos descreveram-nos como “barbaroi”, ou seja, como seres incapazes de se comportarem de acordo com as suas próprias leis. Não foram apenas eles a assim olharem os estrangeiros. O retrato estereotipado do ‘outro’ tornou-se um passatempo vulgar, repetido pela escolástica medieval e, depois, adoptado pelos filósofos do Renascimento, obcecados com o apogeu e o declínio dos impérios e das nações. Após o Iluminismo do século XVIII, quando os philosophes passaram a defender a ideia de uma humanidade universal, a visão caiu em desuso mas nunca desapareceu.

Como é evidente, sobre os portugueses também existem estereótipos. Há o retrato, que vem do Iluminismo, de uma terra povoada por homens atrasados, incultos e brutos; mais tarde, fruto da mentalidade romântica, o de um país habitado por seres pitorescos, excêntricos e anárquicos; e finalmente o de uma Arcádia que teria resistido às investidas do mundo moderno.
Em 1977, Castelo Branco Chaves, que estudou os relatos dos viajantes que vieram a Portugal no século XVIII, afirmou que, embora houvesse retratos positivos, a maioria caracterizava os portugueses como vaidosos e impostores; altivos e arrogantes; hipócritas; vingativos; ignorantes; velhacos; traiçoeiros; desonestos; pedinchões; inconstantes; supersticiosos; fanfarrões; sensuais; ciumentos e preguiçosos.

Após o exaltado debate sobre o racismo — note-se que muitos jovens com ascendência africana são tão portugueses quanto eu — penso que é útil ouvir a voz de Pêro Vaz de Caminha

Mas vamos à questão do comportamento dos negros. Basta olhar os dois quadros, há pouco expostos no Museu de Arte Antiga, que retratam a Rua Nova dos Mercadores de Lisboa no século XVI, para constatar os muitos negros, alguns bem vestidos, que por ali se passeavam entre nobres e burgueses. Em 1551, alguém estimou que 10% dos 100 mil lisboetas eram negros. Em 1578, a percentagem aumentara para 20% dos 250 mil habitantes. Claro que sei que este foi um período excepcional, mas existiu.
A cidade onde eu nasci conviveu sempre com negros. Sim, a maioria era pobre, mas nós víamo-los na rua, sem que eu tivesse notado incidentes de racismo, situação que, reconheço, se alterou depois de 1974, quando muitos residentes das ex-colónias fugiram para Portugal. Infelizmente, não encontraram aqui emprego, tendo sido obrigados a viver em bairros que depressa se tornaram ‘guetos’. A pobreza foi sobretudo dramática na segunda geração: daí os ocasionais distúrbios. Não os estou a desculpar, mas a tentar compreender o que se tem passado.
Após o exaltado debate sobre o racismo — note-se que muitos jovens com ascendência africana são tão portugueses quanto eu — penso que é útil ouvir a voz de Pêro Vaz de Caminha aquando do ‘achamento’ do Brasil. Eis como, em 1500, ele descreve o encontro entre os nativos e o primeiro branco: “Acudiram pela praia homens, quando dois, quando três, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, estavam ali dezoito ou vinte homens pardos, todos nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos e suas setas (…) e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pusessem os arcos. E eles os depuseram.”
Expresso, 2o de julho de 2019
Maria Filomena Mónica escreve de acordo com a antiga ortografia

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