domingo, 11 de agosto de 2019

Escrita no cárcere | Nós, os do Makulusu




Bruno Vieira Amaral
Livros esquecidos | Expresso




J
osé Luandino Vieira, nom de plume de José Vieira Mateus da Graça, está vivo e não está esquecido. Em 2006 foi-lhe atribuído o Prémio Camões, o mais importante galardão da literatura de língua portuguesa. Luandino recusou-o invocando razões pessoais e íntimas. Diria mais tarde que se considerava um escritor morto e que o prémio deveria ir para escritores no ativo. Mas alguém que escreveu um livro como Luuanda nunca está morto. Escrito em Luanda, onde Luandino cumpria pena por ligações ao movimento independentista, seria sempre um terramoto literário, mas foi a atribuição do Grande Prémio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, em 1965, que transformou o livro num abalo sísmico-político. Quando o regime percebeu que o autor estava encarcerado, agora já no Tarrafal, era tarde demais. Os acontecimentos que se sucederam — assalto à sede da SPE, prisão dos membros do júri e encerramento da instituição — deram aos três contos que compõem Luuanda e ao seu autor uma aura mítica que ofuscou as qualidades puramente literárias da obra e remeteu a restante produção de Luandino para um patamar secundário. 

Nós, os do Makulusu foi talvez o que mais sofreu com o brilho prístino do seu irmão mais reputado. Publicado pela primeira vez pela Sá da Costa em 1974, tinha sido escrito numa única semana do mês de abril de 1967, quando Luandino ainda estava no Tarrafal. (Na história da literatura abundam exemplos do que poderemos chamar literatura carcerária, livros escritos quando os seus autores se encontravam presos. De Profundis, de Oscar Wilde, Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, são dois, sendo que Nós, os do Makulusu, como Amor de Perdição, de Camilo, distingue-se por não ser um livro de memórias ou uma reflexão sobre a experiência do cárcere.) Então, no tempo que Deus demorou a fazer o mundo, Luandino desenterrou de si mesmo “uma coisa que [lhe] doía.” Obcecado com a história que tinha para contar, sentava-se debaixo de uma árvore e escrevia. Se, de um ponto de vista linguístico, é menos inovador do que Luuanda, compensa-o com um sentimento febril e de urgência, reflexo das condições em que foi escrito. É uma longa carta de um irmão mais velho ao caçula, Maninho, alferes morto na guerra, mas não em combate. No meio do tom elegíaco, de transe poético, irrompem, fulgurantes, memórias da infância, das gentes do bairro do Makulusu, a descoberta dos tormentos do amor e do desejo, o cheiro da praia e do capim verde, o funje devorado à sombra de uma mandioqueira, a promessa das flores fúnebres que cheirassem a rosas mas rosas não fossem, mas também o eterno desencontro e incompreensão entre colonos e colonizados, entre brancos e pretos, habitantes de dois mundos contíguos mas separados pelo arame farpado ora da brutalidade ora da indiferença quotidiana. 

De um tempo sombrio, Luandino arrancou uma pequena flor de luz.

Expresso - 10 de agosto de 2019


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