terça-feira, 13 de agosto de 2019

Privilégios do Verão




José Tolentino Mendonça
Que coisas são as nuvens | E-Revista Expresso




SOMOS SEMPRE TENTADOS PELO ARTIFÍCIO. USAMOS AS COISAS PARA NOS ESCONDERMOS ATRÁS DELAS

N
ão raro, para olharmos a vida na sua amplidão temos de arriscar outros pontos de vista. Vivemos tão em cima dos acontecimentos, tão capturados pela sua intensidade que verdadeiramente não os conseguimos ver. Por isso é importante mudarmos de sítio, alterarmos o ponto de observação e nos distanciarmos, reencontrando assim as condições que a dada altura nos faltam para podermos ver aquilo que, talvez por estarmos demasiado perto, já não avistamos. O tracejado da vida é, como sabemos, repetitivo e habitudinário e desdobra-se como uma confortável constelação de rotinas. Certamente há nisso enormes vantagens, pois desse modo conseguimos realizar uma extensa quantidade de tarefas com um mínimo de esforço e corresponder agilmente, quase de olhos fechados, às exigências do quotidiano. O perigo maior, porém, é quando a força do hábito se substitui à força da vida. E quando o que se ganha em eficácia na gestão do imediato nos impede de escutar o que, em profundidade, nos habita. Nesse sentido, o período do verão pode corresponder a uma oportunidade. Não para um programa de evasão, como se existência pudesse ser uma coisa em fuga ou uma tarefa adiável. Mas como uma possibilidade real de encontro — na verdade, de reencontro e de audição — da inteireza que somos.

O verão pode corresponder a uma possibilidade real de encontro da inteireza que somos


Demócrito, um filósofo pré-socrático do século V a.C., que definia cada ser humano como “um pequeno universo”, ensinava que o conhecimento em que assentamos a nossa história corrente é mais parcial de quanto pensámos (ele, por exemplo, chamava “conhecimento obscuro” ao que é produzido pela vista, ouvido, olfato, gosto e tato). A este saber parcelar, feito de imagens, fragmentos e impressões, ele opunha aquele operado “por um órgão de conhecimento mais subtil”, de natureza espiritual. Para aceder a isso, contudo, não tenhamos dúvidas: precisamos de tempo. Precisamos desse bem precioso que por vezes é um privilégio oferecido pelo verão, para sairmos da vertigem das vias rápidas com que resolvemos (ou, melhor dizendo, com que empatamos) internamente a vida e voltarmos aos trilhos pacientes de terra batida, aos prados em aberto, às clareiras silenciosas do bosque, aos promontórios onde se contacta com a imensidão. Platão colocou na boca de Sócrates, na Apologia, que o bem maior concedido ao homem é a possibilidade que este tem de se interrogar sobre si mesmo, e que o infortúnio mais lesivo era ser privado dela. Não é fácil perfurar a espessa crosta daquilo que na prática sobrepomos a esta verdade nua que nos reconduz ao essencial. Somos sempre tentados pelo artifício. Usamos as coisas para nos escondermos atrás delas. Atordoamo-nos de pequeninas razões e de grandes desculpas para amortecer o impacto dessa chamada perene. Foi ainda um autor da antiguidade clássica, Menandro, que cunhou um dístico que soa assim: “Que delícia, um homem que é verdadeiramente um homem!” Trata-se do dever mais longo, desamparado e árduo que nos cabe: ser ou tornar-se aquilo que se é. Sem cumprirmos esse mandato é improvável chegar a dizer do nosso existir, “que delícia!”
Quando o turbilhão das ocupações acidentais parece conflituar e esgotar o espaço daquilo que deveria ser a minha ocupação fundamental, ajuda-me muito recordar o título de uma obra do teólogo Paul Tillich, “A Coragem de Ser”. A coragem da aceitação da vida e do risco de viver como um destino, sentindo o chamamento a perseverar num esforço de consciência que me coloque à altura daquilo que significa a minha própria humanidade.
Expresso, 10 de agosto de 2019



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