sábado, 4 de junho de 2022

Encruzilhadas da Europa


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A AURA DE DOM HENRIQUE, IMPONENTE COMO O ROCHEDO DE SAGRES, TERÁ SIDO UM INTENSIFICADOR DA ABSTRAÇÃO DE UM PAÍS

 

No contexto da presidência francesa da União Europeia, Olivier Guez convidou 27 escritores, um por Estado-membro, a publicar um texto sobre a geografia cultural do Velho Continente, fazendo uma espécie de ponto de situação tanto do sonho europeu como das feridas, deceções e cicatrizes, novas e antigas, com a qual a estação presente é chamada a lidar. Ao volume antológico Guez chamou “Le Grand Tour”, mas a intenção evidente não é tanto a de retraçar uma deambulação turística, quanto à de descer aos porões desta nave civilizacional que somos, detalhando um corajoso autorretrato interior. A representante portuguesa é Lídia Jorge que parte, com brilho e desassombro, do emblemático promontório de Sagres e daquilo que a lâmpada gigante do farol revela de uma história, em parte consciente, em parte submersa. O alvo é a figura mítica do infante dom Henrique, certamente um protagonista fundamental para o arranque do complexo movimento de globalização que os portugueses levaram a cabo. Do infante como herói romântico, visionário que se projetou para lá do seu próprio tempo, não faltam representações. Lídia Jorge reporta-se, por exemplo, aos ecos da Exposição do Mundo Português, em 1960, ou, ainda anterior, às páginas da “Mensagem”, de Fernando Pessoa, onde se pode ler: “Em seu trono entre o brilho das esferas,/ Com seu manto de noite e solidão,/ Tem aos pés o mar novo e as mortas eras —/ O único imperador que tem, deveras,/ O globo mundo em sua mão.” A perceção da história alimenta-se, não raro, de imagens grandiosas assim. E, nesses casos, como comenta a escritora, “quem pode resistir à metáfora e ao símbolo?”

Sonho de Sagres, de Elisa Felismino, 1957


 

 

 





Contudo, a aura de dom Henrique, imponente como o rochedo de Sagres, veio a ser, na sua opinião, um intensificador da abstração de um país. Desde crianças, no processo de escolarização, contemplámos bússolas, astrolábios, mapas das estrelas e portulanos, orgulhosos de uma população de pescadores que a Escola de Sagres dotou dos conhecimentos necessários para uma gesta que mudaria a fisionomia do mundo. E não é que isso esteja errado: foi mesmo dessa forma. Mas a realidade tem diversas, contrastantes e complementares versões. Nessa linha, Lídia Jorge conta o que constituiu para ela, já na universidade, a leitura da “Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné”, de Gomes Eanes de Zurara. Este cronista relata o sucedido numa praia africana, em 1444. “O infante era ali em cima de um poderoso cavalo, acompanhado de suas gentes” e presidia a um mercado de escravos, cobrando um quinto pela transação daqueles seres humanos considerados como simples mercadoria. Zurara enche-se de compaixão perante aquele espetáculo, mas a sua voz recorta-se solitária face à sensibilidade da época: “Qual seria o coração, por duro que ser podesse, que não fosse pungido de piedoso sentimento, vendo assim aquela companha? Que uns tinham as caras baixas e os rostros lavados com lagrimas, olhando uns contra os outros; outros estavam gemendo mui dolorosamente, esguardando a altura dos ceus, [...] outros faziam suas lamentações em maneira de canto, segundo o costume de sua terra.” A verdade, porém, é que os impérios se constroem com corações duros. Outros povos europeus traficaram igualmente escravos, mas Portugal à sua conta transportou milhões de pessoas num desapiedado tráfico humano, sobre o qual conversámos ainda pouco. Uma encruzilhada da Europa é, por isso, a relação com este passado, onde a magnificência de Sagres se mistura com a exportação da banalidade do mal. Mostrando como “na sociedade humana o mágico e o trágico caminham de mãos dadas”, Lídia Jorge endereça-nos para uma reflexão necessária. E isso lhe agradecemos.

José Tolentino Mendonça. Que coisa são as nuvens in Expresso Semanário# 2587, de 27 de maio de 2022

 

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