Mudou 30 vezes de nome e queria viver até aos 110 anos para ter o traço perfeito. Em 1830 desenhou uma imagem que se tornou um ícone global. As linhas e cores de Hokusai mostram um desastre iminente, uma catástrofe prestes a acontecer, sendo, pois, metáfora perfeita deste tempo de guerra num planeta ardente
TEXTO ANTÓNIO ARAÚJO, HISTORIADOR
A
o chegar aos 75 anos, escreveu que, tendo começado a desenhar aos seis, quando atingisse os 80 esperava ter feito alguns progressos. Acrescentou que, com 90 anos, talvez começasse a perceber o segredo das coisas e que aos 100 atingiria o divino cume da sua arte. Mas só com 110 anos, disse, alcançaria uma tal fluidez no traço que cada rabisco seu pareceria ter vida.
A sorte não o bafejou a tal ponto e, apesar de ter vivido até tarde, duplicando a esperança média de vida no Japão do seu tempo, morreria em 1849 em Edo, atual Tóquio, onde nascera 89 anos antes, cerca de 1760, nos tempos do xógum Tokugawa Ieharu, para quem seu pai, um modesto polidor e pintor de espelhos, diz-se que chegou a trabalhar. Na adolescência, entalhou blocos de madeira para a produção de xilogravuras, arte em expansão numa época em que, ultrapassadas as grandes fomes Tenmei, de 1782-1788, e na sequência das reformas Kansei, de 1789-1792, o Império viveu um período de tranquilidade e bem-estar sem precedentes, coincidente com o longo e feliz reinado do 11º xógum, Tokugawa Ienari, que governou o país entre 1787 e 1837. A prosperidade económica gerara uma classe emergente de novos ricos, uma burguesia urbana que, em lugar das cenas bélicas ao gosto da aristocracia, preferia as imagens delicadas e suaves da cultura popular do “mundo flutuante” (ukiyo-e). Em jovem, aprenderia esse estilo com Katsukawa Shunshō, especialista de retratos de cortesãs (bijin-ga) e atores de kabuki (yakusha-e), mas, aos poucos, libertou-se da influência do mestre e começou a desenhar e pintar paisagens e episódios do quotidiano, fortemente marcado pelas obras de arte ocidentais que, apesar do autoisolamento do Japão na era Tokugawa, só quebrado em 1853 pela “diplomacia de canhoeira” do comandante Perry, os holandeses estavam autorizados a comerciar, duas vezes por ano, numa faixa estreita do porto de Nagasáqui.
Celebrizado como Katsushika Hokusai, ou apenas Hokusai, mudaria 30 vezes de nome ao longo da vida, consoante as várias etapas existenciais e artísticas, e muitas mais de morada, diz-se que 93 vezes, carregando consigo não mais do que pincéis e tintas, meia dúzia de haveres. Apesar do sucesso e da fama, nunca saiu de uma modéstia remediada e enfrentou tribulações várias (enviuvou duas vezes; foi vítima de um acidente vascular que lhe afetou a destreza; viu morrer uma filha, suportou as dívidas de jogo de um neto meio idiota; em 1839, um incêndio destruiu-lhe o estúdio e o arquivo), adversidades que não o impediram de trabalhar sempre, incessantemente, deixando um legado imenso, composto por 30 a 40 mil desenhos, 270 livros ilustrados e mais de 10 mil xilogravuras. Os últimos tempos de vida, dedicados à pintura, foram dos mais prolíficos da carreira e no ano derradeiro o total da sua produção concentrou-se em apenas três meses, a um ritmo alucinante. No leito de morte, implorou aos céus por mais dez anos de vida, dizendo que lhe bastavam cinco para se tornar um grande pintor.
Era considerado um excêntrico (kijin) pelos seus contemporâneos, fama que lhe adveio de dois ou três episódios que protagonizou: em 1840, no templo Gokoku, perante uma multidão imensa, pintou um gigantesco busto de Daruma sobre uma tela estendida no chão, com uma superfície de mais de 200 m2; noutra ocasião, na corte do xógum, em competição com um rival, deixou que uma galinha passeasse sobre uma folha de papel com as patas embebidas em tinta vermelha, deixando um rasto parecido com folhas de ácer a caírem no outono. Outra vez, reza a lenda, pintou uma ave esvoaçante num minúsculo bago de arroz, em demonstração de extraordinário virtuosismo.
Definiu-se um dia como um “velho louco por pintar” e aspirava a uma vida longa, como deixou escrito no cólofon de um dos seus maiores e mais ambiciosos projetos, “Cem Vistas do Monte Fuji”, de 1834-1839, um conjunto de xilogravuras que tentou, sem sucesso, prolongar o êxito da série “Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji”, de 1830-1832, onde se insere a sua obra mais famosa, “A Grande Onda de Kanagawa”, ou simplesmente “A Grande Onda”.
Curiosamente, o público nipónico sempre preferiu outra gravura da série, o “Monte Fuji Vermelho”, e só há bem pouco tempo, na sequência da grande retrospetiva da sua obra realizada em 2005 no Museu Nacional de Tóquio, é que os japoneses adotaram o nome “Grande Onda” (gureito weibu) para designar a gravura a que até então chamavam tão-só “Sob a Onda” (nami-ura). À época, venderam-se entre cinco a dez mil cópias, um número razoável, longe de extraordinário. A razão desse menosprezo talvez se deva ao facto de, em “A Grande Onda”, o venerado Fuji aparecer como um anão minúsculo, situado ao longe, quase impercetível, em contraste com a forma majestosa e imponente como é retratado no Fuji Vermelho. O motivo decisivo, porém, parece ser outro: hoje convertida em símbolo nacional e erroneamente considerada a quintessência da alma japonesa, “A Grande Onda” é uma obra de forte timbre ocidentalizante, visível no uso dramático da perspetiva e na coloração com azul-da-prússia.
VER AO LONGE, MAIS LONGE
Na gravura de Hokusai, as ondas surgem recortadas em camadas sobrepostas e sucessivas, como cortinas ou panos de cena, teatralizando o drama que se desenrola perante nós. Esguios e curvilíneos, os três barcos adaptam-se à forma das grandes vagas, contribuindo para adensar a tensão e o suspense, pois não sabemos se aqueles navios — e os seus marinheiros — serão vítimas ou atores e cúmplices de uma tragédia iminente, se é que ali existe tragédia alguma ou se tudo não passa, afinal, de uma vulgar cena marítima, um transporte de atuns ao largo de Kanagawa numa manhã de primavera. A espuma tem uma forma anatómica quase humana, ou sobre-humana, semelhante aos dedos ou às garras de um monstro inaudito e marinho, e o script é congelado no preciso e decisivo instante em que a gigantesca massa de água está prestes a desabar sobre aqueles homens, ou sobre nós próprios, num enlace derradeiro e fatal.
Nas artes de palco e na cultura visual japonesa, o elemento dramático aparece sempre do lado esquerdo, subitamente, invertendo o sentido da leitura, e o mesmo sucede com a grande onda de Hokusai. O ondulado das vagas, acentuado pela espuma branca e pelos diferentes tons de azul-da-prússia, confere um estranho dinamismo à cena, a que assistimos de um ponto de vista próximo, envolvente, como se também nós estivéssemos a bordo de uma embarcação ao largo de Kanagawa, como se não fôssemos espectadores, mas partícipes ativos naquele desastre em curso.
“A Grande Onda” tem uma ambivalência singular, pois do lado esquerdo, no mar encrespado, concentra-se a ansiedade e a tensão, enquanto o direito, com ondas baixas em flutuação delicada, irradia calma e tranquilidade. Na verdade, apesar do ritmo veloz da cena, do movimento dado pelo fluxo e refluxo das ondas esmagadoras, da gravura emana uma estranha serenidade, um silêncio conferido pela grandeza do elemento terrestre, o Fuji intemporal e perene, imperturbável.
A vaga em primeiro plano tem a forma de uma montanha, em diálogo com o Fuji ao longe, algo que é sublinhado pela alvura da espuma, dispersa em flocos em tudo idênticos aos das neves da montanha eterna. Esta, por sua vez, é destacada num horizonte esbatido em cinza-escuro, quase negro, seguindo o efeito gradativo dado pelo bokashi, uma técnica especial de impressão das xilogravuras japonesas. A escala é dada pelo confronto entre as vagas imensas e os barcos minúsculos, mas também pela névoa no horizonte, com uma nuvem que se agiganta ao centro, maior que a onda, maior que o Fuji. As vagas, por seu turno, formam como que um túnel ou um anfiteatro que dá profundidade e perspetiva ao monte sacro.
Hokusai foi um dos primeiros a explorar o erotismo baseado em tentáculos (shokushu goukan), na célebre imagem “O Sonho da Mulher Pescador”, de 1814
Este uso das convenções da perspetiva era uma novidade recente, quase revolucionária. Nos alvores do século XVIII, por volta de 1720, foi permitida a importação de livros europeus, desde que não fizessem propaganda cristã, o que fez florescer um movimento conhecido por “estudos holandeses” (rangaku) e, na década seguinte, há notícia da tradução para japonês de um tratado jesuíta sobre arquitetura e perspetiva. Mais tarde, no final da década de 1760, artistas como Utagawa Toyoharu e, sobretudo, Shiba Kōkan começaram a pintar e a criar gravuras, em madeira e cobre, de edifícios holandeses em cenários orientais, fazendo uso de sombras e da perspetiva, uma técnica inovadora que cativou Hokusai praticamente desde o seu início de carreira. Nos anos subsequentes, e fazendo uso das sombras e da perspetiva, desenharia várias cenas marítimas em que as vagas têm claras semelhanças com “A Grande Onda”, sem, todavia, atingirem ainda o fulgor, a clareza ou subtileza de traço e a limpidez e a depuração estilísticas da sua opus magnum.
Alguma imaginação romântica tende a considerá-la o protótipo do sublime, quando, na realidade, era uma peça de arte barata, popular e vulgar, comercializada em larga escala, sendo também, e sobretudo, uma obra híbrida, compósita, mescla de leste e de oeste. Daí resultou, sem que Hokusai se tenha apercebido disso, uma síntese eloquente do seu país, de um Japão sempre dividido entre o antigo e o novo, a tradição ancestral e a modernização reformista, o isolamento e a abertura ao mundo.
UM POUCO MAIS DE AZUL
A série “Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji” foi, antes de mais, um empreendimento comercial destinado ao grande público, com largas tiragens a preços convidativos, como os nossos pósteres. Cada gravura, impressa em papel de amoreira de grande formato, 26,5x39 cm, pouco menor do que um A3, custava cerca de 20 mon, o preço de uma dose dupla de noodles num restaurante médio da capital. Nos folhetos publicitários, o editor, Nishimuraya Yohachi, anunciava uma série com “uma paisagem por gravura, publicada sucessivamente e impressa a azul”.
Ao tempo, o Japão vivia aquilo que já se designou por “revolução azul”, tal era a paixão de artistas e compradores por uma nova coloração, o azul-da-prússia (ou azul-de-berlim), descoberto em 1704 pelo químico suíço Johann Jacob Diesbach, o qual, enquanto tentava reproduzir o tom carmim da grana cochinilha trazida das Américas, acabou acidentalmente por produzir um azul tão forte que julgou estar perante o lendário hsbd-iryt, a cor original do céu, o mítico azul, cuja fórmula se perdeu, com que, 5 mil anos antes, os egípcios decoravam a pele dos seus deuses (investigações recentes mostraram que o tetrassilicato de cálcio e cobre do “azul egípcio” emite uma radiação infravermelha semelhante à dos controlos remotos de televisão, das fechaduras dos automóveis ou outros dispositivos de telecomunicações, e é passível de ser usada em novos tipos de nanomateriais para aplicações de vanguarda, como imagens biomédicas, emissores de luz infravermelha para plataformas de telecomunicações ou tintas de segurança). Seria, contudo, o sócio e financiador de Diesbach, o controverso alquimista e teólogo Joahnn Konrad Dippel, que muitos garantem ter sido o modelo para o “Frankenstein”, de Mary Shelley, quem lucrou com aquela descoberta de uma nova tonalidade de azul que, em finais do século XVIII, se tornou extremamente popular entre os pintores japoneses que trabalhavam com materiais levados para o porto de Nagasáqui por comerciantes da Holanda e da China. Desde a década de 1820, aliás, a China já produzia aquela tonalidade de azul, sendo daí que, muito provavelmente, veio a tinta usada em “A Grande Onda”.
Expresso semanário#2589, de 9 de junho de 2022
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