QUANDO EM 161 A.C. SE ESCREVEU EM LATIM O PRIMEIRO AHAHAHA, O MUNDO MUDOU. NÃO HÁ EMOJI QUE ME CONVENÇA DO CONTRÁRIO
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Por isso gosto do ahahaha. Ainda se encontram adeptos nas mensagens. Nunca entendi os Ah! Ah! Ah! Imagino sempre um homem gordo a dar gargalhadas espaçadas. O ahahaha é perfeito e permite variações. O ehehehe malandro, o ohohoho mais gozão (não confundo com o oh! oh! oh! do Pai Natal) e o ihihihi que algumas senhoras usam quando fazem maldades. lol
Matar o ahahaha é um grande erro. Mary Beard, no seu livro “Laughter in Ancient Rome” (do qual tenho a versão espanhola, que foi lançada há um mês), detetou a primeira gargalhada escrita na peça “O Eunuco”, representada pela primeira vez em 161 a.C. e que foi a obra mais popular de Terêncio. A peça “inclui todas as habituais intrigas românticas, mas deve a sua força ao uso divertido de disfarces e travestismo” — um jovem que se faz passar por eunuco para chegar a uma bela rapariga (escrava) que pertence a uma cortesã. Não, não viveram felizes para sempre, mas o jovem vingou-se violando a filha da cortesã e estragando o casamento — o que mostra o abismo entre a moral num remate narrativo da Antiguidade e o nosso final feliz. Mas a honra da gargalhada fundacional está a cargo de Gnatón — uma personagem-tipo que sobreviveu no tempo: bufão, bajulador, uma combinação cómica já então existente. E pela primeira vez, que se saiba, a partir de um texto escrito, representa o ato de rir, e em latim, uma resposta a Trasón: “ahahahae”.
Terêncio — até prova em contrário — tinha inventado a gargalhada escrita. Isto não quer dizer que os atores e o público não se rissem antes. Que os atores não tivessem momentos em que era suposto rirem-se e que o público não se risse. Mas esta é a verdade. Por escrito, numa peça de teatro, a primeira gargalhada está em “O Eunuco”: ahahahae. Escrito há 2183 anos. Que está a morrer às mãos de um lol pífio.
E já agora, que estou com a mão na massa, o que fazia rir os romanos? Riam-se dos carecas mas não se riam dos cegos. Há piadas, muitas anedotas, muitas delas absurdas para nós, porque não compreendemos o hábito que está por detrás (anedotas com urina e lavandaria não fazem sentido se não soubermos a utilidade da primeira para a roupa branca). Mas há muita piada que ainda resulta (“um cidadão vai ao barbeiro e este diz: ‘Como quer que corte o cabelo?’ E o cliente responde: ‘Em silêncio’” lolada). E há muitas que funcionam sabendo o contexto. Quando os romanos destruíram a cidade grega de Coríntio, em 146 a.C., encheram os seus navios de antiguidades preciosas. O imperador, que estava a supervisionar o saque, olhou para um capitão de navio e disse: “Não partas nada, senão vais ter de repor por outro igual.”
Por causa de uma versão romana do “Philogelos” (o mais antigo livro de piadas, grego, do século IV a.C.) é possível perceber que os romanos riam-se da alopecia (alô Will Smith) mas não da cegueira, riam-se de piadas sobre crucificações e parricídios e de muitas piadas sobre imperadores, em que Cómodo e Calígula foram os preferidos — o que prova que o humor teve desde sempre esta componente de ridicularizar e desmascarar o poder. Riam-se de imperadores cruéis, dos estúpidos ou dos generosos. Mas o poder também se ria, e há piadas escabrosas de imperadores. Só que essas eram performativas. Ele concretizava-as. Uma piada sobre cortar a cabeça a um senador? Nada como cortar-lhe mesmo a cabeça para ser ainda mais cómico.
No sketch dos Monty Python “O que nos deram os romanos, para além das estradas, dos sistemas sanitários, da irrigação, do sistema de ensino, dos banhos públicos, da lei e da ordem?”, Mary Beard acrescenta: o “sentido de humor”. O incrível não é que não achemos piada a algumas das anedotas, mas que achemos piada a muitas delas. E a estratégia do humor enquanto forma de ridicularizar, de desmontar o poder e de ter os seus tabus (os cegos e as deformidades) já lá estava. Isso é espantoso e merece um grande ahahahae para eles. E um lol passivo-agressivo de desdém e sentido inverso com demonstração de algum desamor para quem não o reconhece.
Luís Pedro Nunes, O mito lógico, Expresso Semanário#2588, de 3 de junho de 2022
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