quinta-feira, 23 de junho de 2022

Viajar com Camilo | Porto - Cadeia da Relação

 



"Faleceu‑me ânimo para entrar no teatro de Vila Real, onde mancebos de primoroso engenho, que os há ali para tudo, representavam regularmente. Aquele teatro era de minha família: nunca teria nascido, se eu não tivesse escrito um mau drama, que dediquei a meu tio. Mas que ambiente de mil aromas eu respirava naqueles meus vinte anos! Como as paixões de então me desabrochavam lindas e imaculadas! O que eu via, e esperava dos homens e de Deus!

Na primeira noite de récita, recordo‑me eu que fiquei ouvindo de minha tia a história de meu avô assassinado, de meu tio morto no degredo, de meu pai levado pela demência a uma congestão cerebral. 

Que delicioso recordar, quando eu me estava vigorizando para entrar nos cárceres da Relação do Porto, e estender os pulsos às gramalheiras d’ ouro, que os meus inimigos batiam na bigorna da moral pública!

Saí dali, sem dizer à família o meu destino. Espavori algum raro amigo a quem o revelei. Era propósito que nem a perspetiva do patíbulo demoveria.

Cheguei ao Porto em meado de setembro de 1860. Custódio Vieira, Marcelino de Matos e Júlio Xavier sustiveram quinze dias a pressão dos esbirros, porque me viram com mais alma que corpo para encarar na morte da liberdade, e na outra que desprende a alma dos podres vínculos da matéria.

Terminado o prazo das tréguas, que os aguazis me concederam magnanimamente, fui ao tribunal do crime, pedi um mandado de prisão, mediante o qual obtive do carcereiro licença de recolher‑me a uma das masmorras altas da Relação.

Era o primeiro dia de outubro de 1860. O céu estava azul como nos meses estivos. O sol parecia vestido das suas galas de abril. A bafagem do sul vinha ainda aquecida das últimas lufadas do outono. Que formoso céu, e sol; que suave respirar eu sentia, quando apeei da carruagem à porta da cadeia!"

Camilo Castelo Branco. Memórias do Cárcere. Lisboa: IN-CM, 2021, pp. 41-42






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