"Faleceu‑me ânimo para entrar no teatro de Vila Real, onde mancebos de primoroso engenho, que os há ali para tudo, representavam regularmente. Aquele teatro era de minha família: nunca teria nascido, se eu não tivesse escrito um mau drama, que dediquei a meu tio. Mas que ambiente de mil aromas eu respirava naqueles meus vinte anos! Como as paixões de então me desabrochavam lindas e imaculadas! O que eu via, e esperava dos homens e de Deus!
Na primeira noite de récita, recordo‑me eu que fiquei ouvindo de minha tia a história de meu avô assassinado, de meu tio morto no degredo, de meu pai levado pela demência a uma congestão cerebral.
Que delicioso recordar, quando eu me estava vigorizando para entrar nos cárceres da Relação do Porto, e estender os pulsos às gramalheiras d’ ouro, que os meus inimigos batiam na bigorna da moral pública!
Saí dali, sem dizer à família o meu destino. Espavori algum raro amigo a quem o revelei. Era propósito que nem a perspetiva do patíbulo demoveria.
Cheguei ao Porto em meado de setembro de 1860. Custódio Vieira, Marcelino de Matos e Júlio Xavier sustiveram quinze dias a pressão dos esbirros, porque me viram com mais alma que corpo para encarar na morte da liberdade, e na outra que desprende a alma dos podres vínculos da matéria.
Terminado o prazo das tréguas, que os aguazis me concederam magnanimamente, fui ao tribunal do crime, pedi um mandado de prisão, mediante o qual obtive do carcereiro licença de recolher‑me a uma das masmorras altas da Relação.
Era o primeiro dia de outubro de 1860. O céu estava azul como nos meses estivos. O sol parecia vestido das suas galas de abril. A bafagem do sul vinha ainda aquecida das últimas lufadas do outono. Que formoso céu, e sol; que suave respirar eu sentia, quando apeei da carruagem à porta da cadeia!"
Camilo Castelo Branco. Memórias do Cárcere. Lisboa: IN-CM, 2021, pp. 41-42
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