sexta-feira, 3 de junho de 2022

Os olhos, os coturnos, os pés

 





1.

Uma notícia científica: “Cientistas conseguiram ressuscitar a actividade celular dos olhos humanos após a morte.”
A notícia diz ainda: “Este estudo junta-se a outros que têm levantado questões sobre a natureza irreversível da morte, como uma pesquisa de Yale onde os investigadores conseguiram ressuscitar os cérebros de porcos quatro horas depois da morte.”
As técnicas são várias e complexas, mas há nesta notícia algo que perturba.
Se podes reparar e ressuscitar a parte (os olhos), talvez possas também, um dia, recuperar, ressuscitar, o todo (o inteiro humano, dos olhos à nuca, do cocuruto à sola dos pés).

2.

Em português, a palavra cocuruto parece nome de pássaro, mas não é.
Mas se pensarmos que quem tem nome de pássaro tem de ser pássaro, então todos os humanos terão a imerecida sorte de nascer já com um certo emissor de melodias caladas no exacto topo da cabeça.
Ou então pensar o cocuruto da cabeça como se este fosse, sim, um animal sensato que em vez de chilreio e melodias produzisse argumentação.
No meu caso, que numa linha recta me perco excessivas vezes, talvez pedisse, se possível, que o cocuruto que trago, sem dele sentir o peso, tivesse a modesta função de me orientar entre norte, sul, este, oeste, para onde vou e de onde vim — que a orientação no espaço — vim de onde, vou para onde — é evidentemente orientação metafísica.
Quem sabe exactamente para onde vai, e no caminho não se perde, ou é um sábio clarividente ou um evidente tonto.
A quem está no meio, como biliões de humanos e eu, pouco resta senão fazer do “estar perdido” um local minimamente confortável. Se vais passar muito tempo num sítio, instala nele cadeiras e janelas; que em vez de gritar por socorro quem está perdido se sente em cadeira decente (frase rápida terminada em rima curta).

3.

A notícia de novo: “Cientistas conseguiram ressuscitar a actividade celular dos olhos humanos após a morte.”
Uma notícia importante. O olho não é, na anatomia, uma parte qualquer.
O olho é um sítio que pensa.
Uma parte mental do corpo.
O cérebro não está fechado numa caixa, todos o sabemos; sai para fora de muitas maneiras, uma delas é pela curiosidade óptica.
Há também curiosidade táctil, olfactiva, auditiva, etc., e em todas estas formas de puxar o mundo para o corpo o cérebro está presente.
A curiosidade é a forma de o cérebro existir no exterior; é a forma — se necessário até sentada — de o cérebro dar passeios longos ou avançar em fuga veloz.
A única forma de uma cabeça sair de casa é ser curiosa. Não precisas de andar; a inquietude basta.
A falta de curiosidade é a falta de cérebro.

4.

O cérebro quer ver, daí existirem nos humanos e noutros animais os olhos — dois, um ou muitíssimos.
E o cérebro quer tocar, daí existir a pele.+
A mão, por exemplo, é um pedaço de cérebro com cinco dedos hábeis e astutos.
Não tocar é abdicar do pensamento táctil. E assim sucessivamente.

5.

Uma rápida história conhecida.
Dois fúteis humanos em conversa:
— O que te parece pior: a ignorância ou o desinteresse?
E o outro responde:
— Não sei nem me interessa.

6.

Há um exército de pessoas que poderão ser designadas como os “não sei nem me interessa”. Ignorância intelectual defendida como quem defende o último castelo da nação.
Os “não sei nem me interessa” estão em todo o lado, como uma seita secreta, mas cuja identidade, no entanto, é logo revelada pelos olhos. Ao contrário, pois, da importante notícia científica da semana (do ressuscitar da “actividade celular dos olhos humanos após a morte”), aqui, nos “não sei nem me interessa”, bem mortos estão os olhos bem antes de o corpo inteiro falecer.
Os olhos dos “não sei nem me interessa” são uma espécie de aquário de águas paradíssimas e límpidas onde apetece colocar um mínimo peixinho vermelho para dar alguma cor e movimento.

7. 

Dois versos de Carlos Drummond de Andrade.
“Tantos pisam este chão que ele talvez um dia se humanize.”
Somos humanos dos olhos aos pés.
A humanização do chão como boa ou má notícia?
Isso, claro, é outro assunto.


Gonçalo M. Tavares, Os cadernos e os dias - História fragmentada do mundo, Expresso Semanário#2586, de 20 de maio de 2020. O escritor escreve de acordo com a antiga ortografia.







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