FICAMOS ESMAGADOS COM A SUCESSÃO ININTERRUPTA DE OBJECTOS BELOS, ANTIGOS OU MONUMENTAIS, UMA IMPRESSÃO INTELECTUALIZADA QUE NEM SEMPRE DESPERTA UMA REACÇÃO PSICOSSOMÁTICA
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Também sofri de síndroma de Stendhal em Itália. Os sintomas foram bastante menos dramáticos, mas ficamos de facto esmagados com a sucessão ininterrupta de objectos belos, antigos ou monumentais, uma impressão intelectualizada que nem sempre desperta uma reacção psicossomática. Mas se em Itália já ia preparado, porque a arte italiana, no seu auge, não tem comparação, este ano aconteceu-me de surpresa na Haia, quando visitei o Mauritshuis sem saber nada sobre o museu.
O sólido e elegante edifício neoclássico, originalmente erguido em meados do século XVII para um aristocrata, Johan Maurits, conde de Nassau-Siegen, governador do Brasil holandês, foi reconstruído após um incêndio, comprado pelo Estado, e tornou-se mais tarde no primeiro museu público holandês, expondo as “curiosidades e pinturas” acumuladas pelos príncipes de Orange. A colecção inclui numerosas obras dos mestres flamengos, de Van der Weyden (1400-1464) a Holbein, Van Dyck, Bruegel, Rubens e Frans Hals (c. 1582-1666), e tem também Rembrandts e Vermeers. Mas não estava à espera de entrar em salas pequenas e contíguas, sem muito público, e deparar-me com “A Lição de Anatomia do Dr. Tulp” (1632), logo a seguir o “Auto-retrato aos 63 Anos de Idade” (1669), e depois a “Rapariga com Brinco de Pérola” (c. 1665). Impressionou-me a proximidade, o espanto. E à identificação de um quadro já muito visto em reproduções seguiu-se o efeito da “aura”, a tranquilidade intranquila daquelas imagens introspectivas e enigmáticas.
Começando pela lição de anatomia, encomenda da guilda dos cirurgiões, saltam à vista os enormes colarinhos brancos, que dão um aspecto antigo ao que é manifestamente uma obra sobre a modernidade e o saber de experiências feito; os homens atentíssimos à autópsia em contraste com outros, hieráticos, compostos, a olhar para o espectador; e a evidência de que os mais alourados de entre eles parecem quase tão brancos como o branquíssimo morto, um ladrão enforcado, a quem se juntarão em breve. No auto-retrato de Rembrandt, o último que pintou, no ano em que morreu, toca-me a completa aceitação daquilo que se é; a arte como espelho sofisticado, fiel ao factual e ao não-lisonjeiro; e a maturidade e mestria tanto do sujeito aos 63 como da apurada técnica com que o sujeito se representa. Quanto à rapariga, tão célebre e tão fotografada que o museu acrescentou uma barreira que serve também de apoio, comove-nos ainda mais ao vivo o incompleto movimento do pescoço, interrogativo e calmo, “um mover de olhos, brando e piedoso”, as discretas cores e os discretos brilhos, o incongruente brinco volumoso, o amarelo e azul do turbante, o vermelho molhado dos lábios entreabertos e perdulariamente eróticos. Não tive palpitações ou tonturas, mas compreendi o que Stendhal compreendeu: a voracidade da beleza e a verdade do visível.
Pedro Mexia, Fraco Consolo, in Expresso Semanário#2588, de 3 de junho de 2022
O escritor escreve de acordo com a antiga ortografia
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