terça-feira, 29 de junho de 2021

O eixo e a lava

 


DANIEL FARIA FOI UM RARO POETA DA MINHA GERAÇÃO QUE NÃO PARTIU PARA A POESIA COM DESCONFIANÇA, TALVEZ PORQUE ENTENDESSE A LINGUAGEM DOS POEMAS COMO CONTINUAÇÃO DA IMAGÉTICA E DA POÉTICA BÍBLICA

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m chama-se “Explicação das Árvores e de Outros Animais”, e abre com estes versos: “Depois das queimadas as chuvas/ Fazem as plantas vir à tona/ Labaredas vegetais e vulcânicas/ Verdes como o fogo/ Rapidamente descem em crateras concisas/ E seiva/ E derramam o perfume como lava”. O outro, que se intitula “Homens que São Como Lugares Mal Situados”, começa assim: “Examinemos um homem no chão/ Testemos a transformação de um homem por terra/ A sua natureza tão diferente da lava, a sua maneira mineral/ De adormecer/ O que mais interessa é ver o seu lugar rodando para perceber o eixo/ Que o move no mundo/ Ou como pode a sua posição orientar as aves e os astros”. Esses dois livros, que não eram os primeiros de Daniel Faria, saíram em 1998, editados por uma instituição que desconhecia, a Fundação Manuel Leão, e chegaram-me às mãos no ano seguinte, logo depois da morte acidental do autor, aos 28 anos; de modo que tomei contacto com ele já como um “caso”, não apenas pelos livros que deixou, mas por ser um monge beneditino e por ter desaparecido tão precocemente.



O poeta morreu em 1998, aos 28 anosD.R.

O “caso” não é o que mais importa, mas tem a sua importância. Daniel foi um raro poeta da minha geração que não partiu para a poesia com desconfiança, talvez porque entendesse a linguagem dos poemas como continuação da imagética e da poética bíblica. Os versos dele estão cheios de termos, episódios e personagens das Escrituras, como o filho pródigo, a mulher adúltera, ou o cobrador de impostos, Zaqueu, que subiu a uma figueira para conseguir ver Jesus no meio da multidão. Por esse motivo, alguns poemas assumem-se como formas sucintas de compreender o mundo a partir de uma tradição antiga e de um diálogo hipotético: “Sei que existes e multiplicarás/ A tua falta/ Somarei a tua ausência à minha escuta/ E tu redobrarás a minha vida”. O impacto destes poemas em tantos não-crentes nasce de uma dialéctica entre ausência e certeza, vazio e plenitude. Porque a poesia, não sendo teologia, preserva um enigma, ainda que defina o enigma como “explicação”.

Em 1999, quando descobri esses dois livros, fiz o que se faz quando não se conhece um autor, ou não se consegue perceber de onde vem: imaginei continuidades, afinidades. Pareceu-me que nestes poemas convergiam Sophia e Herberto, o desassossego sereno de uma, até com referências à Antiguidade clássica, e a expansividade cosmogónica e a linguagem inusitada de outro, os meteoros, as mulheres que “aspiram a casa para dentro dos pulmões”. Foi uma tentativa apressada de entender, mas ajudou-me. Depois, fui compreendendo que a força de alguns destes versos não depende de uma exegese, nem cristã, nem agnóstica: “a casa vem demolir o homem”, “anoitece como num dia de acidentes”, “a lei das coisas é tombar interrogando-se”, “põe uma escada e sobe ao cimo do que vês”, pequenas intuições ou pequenas injunções em que nos reconhecemos.

Entre poesia e teologia há muitíssimas diferenças e uma semelhança: a questão do nosso lugar no mundo. Mais do que as “explicações”, é a ideia contida no outro título que fundamenta o que se revelou ser uma invulgar capacidade de chegar a leitores com ou sem inclinação metafísica: a ideia de sermos, uns mais que outros, uns em certos momentos, outros em todos, “homens [e mulheres] que são como lugares mal situados”, “como sítios fora dos mapas”, “como projectos de casas”, “como casas saqueadas”, “como esconderijo dos contrabandistas”. E vemos então que a questão do lugar incerto está ligada à questão da finitude, assunto obsessivo em Daniel Faria, como se fosse um pressentimento. Neste ano em que faria 50 anos, quero lembrar as suas claras angústias, as suas convicções poéticas que valem toda uma teologia.

Pedro Mexia. Franco consolo, in Expresso Semanário #2538, de 18 de junho de 2021

Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia


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