domingo, 20 de junho de 2021

Penso, logo incomodo

 




Quino morreu no ano passado. Mafalda, essa, quase 60 anos após o seu nascimento, continua de boa saúde

S

e há personagem que atravessou várias gerações e ainda hoje mantém uma flagrante atualidade é, sem dúvida, Mafalda, a menina contestatária que o cartoonista argentino Joaquín Salvador Lavado, mais conhecido por Quino (1932-2020), criou em 1963 e que, no ano seguinte, apareceu pela primeira vez na revista “Primera Plana”.

Publicadas em numerosos países, as tiras de Mafalda chegaram a Portugal ainda antes do 25 de Abril, na Dom Quixote de Snu Abecassis e certamente pela mão de Carlos Araújo. Quando a editora foi adquirida por Nelson de Matos, retomámos imediatamente a publicação dos álbuns, culminando esse trabalho com a saída, em 1986, do icónico volume “Toda a Mafalda”. As vendas de Quino eram para a época muito significativas, tendo em conta a popularidade crescente de Mafalda e dos seus companheiros de aventuras.

Coloque-se o leitor nos anos 80. Não havia computadores, não havia e-mails, não havia internet — o mundo era muito mais distante do que é hoje. Editoras havia que traduziam livros estrangeiros sem qualquer autorização dos respetivos autores ou editores, e, mesmo quando os contratos existiam, as prestações de contas nem sempre correspondiam às vendas efetivamente realizadas. Diga-se, em abono da verdade, que não era um “mal” português: recordo-me perfeitamente de uma ainda hoje célebre editora francesa ter reportado escassas vendas de um autor português cujo sucesso em França era por demais conhecido.


Quino no Palácio Foz, em Lisboa, com Nelson de Matos, Manuel Alberto Valente, Tóssan e Mário Braga


Em 1986, Quino veio a Portugal — houve uma exposição dos seus desenhos no Palácio Foz e uma concorridíssima sessão de autógrafos no restaurante The Great American Disaster, no Marquês de Pombal. As filas davam quase a volta à praça, e Quino não parava de assinar livros. Num determinado momento, Alicia, sua mulher, aproximou-se de mim e, com ar irónico, afirmou: “Vocês precisam de aumentar as tiragens. Com as tiragens pequenas que têm feito não há livros que cheguem para tanta gente.”

Anos depois, em Frankfurt, o agente de Quino, Marcelo Ravoni, disse-me uma coisa quase profética: “Quando, com os sistemas informáticos, a gestão de stocks estiver associada aos programas de prestação de contas, ficará mais caro aldrabar as vendas do que pagar os direitos devidos.”

Quino morreu no ano passado, na sua cidade natal de Mendoza, já viúvo. Mafalda, essa, continua de boa saúde — e a comentar com acutilância muitos dos males do mundo em que vivemos.

Manuel Alberto Valente. O outro lado dos livros. Expresso Semanário # 2537, de 11 de junho de 2021

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