sexta-feira, 18 de junho de 2021

A moral do essencial


Kundera, a

 


KUNDERA É UM DAQUELES ESCRITORES QUE ACREDITAM QUE NÃO HÁ NADA RELEVANTE A DIZER NUMA NOTA BIOGRÁFICA, PORQUE TUDO O QUE IMPORTA VEM NOS LIVROS


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ilan Kundera nasceu na Checoslováquia. Em 1975, instalou-se em França”. Tive sempre uma certa admiração por esta lacónica nota que acompanhava os livros. Nem bibliografia, nem elogios, nem outras datas, apenas duas coordenadas geográficas. Kundera é um daqueles escritores que acreditam que não há nada relevante a dizer numa nota biográfica, muito menos numa biografia, porque tudo o que importa vem nos livros. E avisa que nem sequer o “eu” dos livros é o “eu” empírico: “Impor o nosso eu aos outros é a versão mais grotesca da vontade de poder.”

Kundera, agora nonagenário, gosta do recato. Há quase 40 anos que não vai à televisão, e as poucas entrevistas que deu foram por escrito, com copyright registado, para evitar que digam que disse aquilo que nunca disse. Na última década ainda escreveu um romance resmungão, uns textos esparsos, umas reacções a polémicas. Mas já não é a figura mediática que era quando o li pela primeira vez, talvez em 1989, um pouco perplexo com aquele homem de Leste com cara de pugilista, sempre sisudo, e que numa fotografia promocional aparecia de T-shirt e blusão aberto, a fumar charuto. Lembro-me de que estava então na moda dizer que se andava a ler Kundera, mas lembro-me também de que muitos leitores desistiam, fosse por causa da polifonia, da filosofia ou da sofisticação centro-europeia.


Milan Kundera. Foto:François Lochon |Gamma-Rapho via Getty Images


A imagem de Kundera era, em alguns círculos, a de um dissidente que escrevia sobre sexo. Mas até no muito libidinoso “A Insustentável Leveza do Ser” (1984) o sexo é em grande medida cosa mentale, ainda que com aquela desenvoltura não-cristã dos checos. Quanto ao “dissidente”, bom, se ele se expatriou foi porque era persona non grata na Checoslováquia, tendo a polícia política compilado um dossiê de milhares de páginas acerca do seu “ocidentalismo” e “elitismo”. Assumiu a sua oposição ao regime, que muitos checos consideraram tardia, mas nunca quis voltar ao debate que manteve com Václav Havel acerca do “exibicionismo moral” dos dissidentes, ainda que possamos dizer que a crítica ao comunismo através da crítica do quotidiano (a televisão, a música, a arquitectura) os aproximasse. Além desse desconforto, sabia também que se se apresentasse como um “dissidente”, isso condicionaria a leitura dos livros. E a ideia do romance enquanto “documento” aborrecia-o.

Uma jornalista do diário “Le Monde”, Ariane Chemin, que publicou no jornal vários esboços biográficos sobre Kundera, entretanto reunidos em livro, desfez a ideia de um dissidente activista, ou de um hedonista libertino, chamando antes a atenção para a dimensão voluntarista, determinada. Chemin lembra que Kundera descobriu a certa altura que as suas traduções francesas lhe adulteravam completamente o estilo, e que um dos tradutores seria até um agente checo. Dedicou-se então a rever todas as traduções, a reescrevê-las, a coordenar novas “versões autorizadas” dos romances. Em seguida, começou a escrever livros directamente em francês, para que nada se perdesse na tradução. E quando colaborou com a edição das obras completas na Pléiade, excluiu textos conhecidos, retirou prefácios, suprimiu referências, reduziu ao mínimo o aparato crítico e dispensou qualquer biografia ou cronologia. Quis assim marcar a diferença entre a “moral do arquivo” e a “moral do essencial”. Porque se Kundera esteve, em tempos, na moda, nunca foi um homem de modas.

Pedro Mexia. Fraco consolo, Expresso Semanário # 2536, de 4 de junho de 2021.  Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia.

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