sexta-feira, 18 de junho de 2021

O som do mal

 



1.

França vai publicar este mês o “Mein Kampf”; uma edição crítica do livro de Hitler.
É preciso rodapés para que as frases do mal sejam compreendidas na sua pura maldade pelas pessoas boas — podíamos dizer, de forma cínica.
As pessoas boas entendem melhor os rodapés do que o texto principal, é uma conclusão possível.
Se é preciso comentário é porque os leitores tontificados nada capiscam do texto que lêem.
Como um andante que mesmo com pernas intactas peça, logo à saída de casa, umas belas duas muletas para caminhar com apoio dos dois lados.

2.

Claro que nem sempre a explicação de um texto se percebe melhor do que o próprio texto. Podemos, aliás, pensar numa distopia em redor da compreensão das coisas.
A distopia seria esta: no futuro, nenhum cidadão saído do ensino estatal, cada vez mais estático, entenderia directamente um texto, e por isso levantaria o dedinho de aluno e pediria em formato de: please, não entendo nada, pediria então uma explicação do texto ou das coisas, elas mesmas. E essa explicação do texto inicial seria mais incompreensível do que o texto inicial e, por isso, um segundo dedinho levantado pediria uma explicação da primeira explicação, e esta segunda explicação seria ainda mais críptica e, assim, uma terceira explicação, uma quarta e etc., até ao infinito, apareceria na sala da aula geral do mundo e, a cada uma, mais afastado do texto inicial ficaria o cidadão pasmado, treinado desde os 6 anos apenas para memorizar como uma estrutura básica de RAM com duas pernas, dois braços e zero de sentido crítico.
Está em curso, diz a parte pessimista da minha parte pessimista, uma produção a grande escala de cidadãos pasmados que precisam de intermediários para entender os factos e os textos — como se os textos, na sua própria língua, precisassem de tradutor.
É preciso traduzir o “Mein Kampf” duas vezes: uma para a nossa língua e uma outra para a nossa inteligência crítica, que está, há muito, situada abaixo do mínimo, bem abaixo do nível do mar.

3.

Que bonzinho é o lobo, diz o cidadão, impreparadíssimo pela escola desinfectada do mais mínimo indício de enxofre, impreparadíssimo o leitor moderno para o acto simples de detectar os animais gulosos e temíveis.
Muitos cidadãos do século XXI confundem o lobo mau com o capuchinho vermelho e quando diferenciam só diferenciam pelas cores, não pelos dentes. No século do desenho que explica, um daltónico está perdido na separação do bem e do mal como uma criança no meio da floresta.
Os rodapés críticos, que fazem o leitor do “Mein Kampf” tomar atenção às terríveis frases que ali vão, devem estar com um tamanho de letra maior do que o tamanho de letra do texto original. Eis uma hipótese para que o leitor perceba de uma vez que aquilo que está em Caps Lock e a letras gigantais é mais importante do que aquilo que surge a letras picolinas. O importante vem em grande, o pouco importante é o pequenino — dizem os professores aos adultos-infantis do século XXI.
Exemplo: 12 Times new roman para o texto de Hitler, 18 Times new roman para os rodapés que assinalam com o dedo indicador bem claro: aqui vai a frase do mal, o caminho do mal, o caminhante do mal.

4.

Podemos também pensar que tipo de letra será escolhido para o “Mein Kampf”. E qualquer escolha parecerá sempre política e decisiva. Algerian? Arial Black? Arial Nova? Century Gothic? Univers? Verdana?
Vão ser feitos mil exemplares, cada um a cem robustos euros — e esses mil exemplares são destinados a estudiosos, claro.
Só os estudiosos podem estudar o texto do mal. Os outros, os iniciantes na compreensão dos textos, têm acesso à história da carochinha e a um belo livro sobre botânica moderna.
Toda a multidão que for infantilizada ficará infantil, isto é uma conclusão óbvia que a própria frase encerra.

5.

Quando é necessário assinalar com trombetas não o bem que aí vem mas o mal que aqui está é porque os senhoritos e as senhoritas cidadãs do século XXI têm claramente um péssimo ouvido para detectar o forte ruído da carroça maligna. Talvez a desinfeção geral das estradas, a assustada desinfecção geral das estradas, faça com que os cidadãos percam o ouvido atento às minúcias que vêm pelo ar quando o mal aparece e fiquem apenas com sensibilidade para os grandes estrondos. Como um surdo que só percebesse uma terrível explosão quando os seus olhos vêem o edifício a desmoronar-se.

Gonçalo M. Tavares. Os cadernos e os dias - História fragmentada do mundo, Expresso, Semanário #2536, de 4 de junho de 2021. Gonçalo M. Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


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