domingo, 12 de março de 2023

Há poderes que tutelam a liberdade artística

 




Q


uando o quadro “Les Baigneuses”, de Gustave Courbet, foi exibido no Salão de 1853 em Paris, o imperador Napoleão III, exaltado, chicoteou a pintura — a nudez não era desconhecida naquelas paredes, mas mostrou-se chocado com o realismo da imagem, a mulher de costas, ancas largas e um pano que não as escondia. A Napoleão, o “trapaceiro”, como lhe chamou um contemporâneo, que fora eleito presidente há cinco anos e consagrado imperador há um, convinham os grandes gestos de autoridade, porventura mais do que o castigo da arte, e a imperatriz aplaudiu-o. Do gesto daquele chicote, ou pingalim que fosse, nada mais sobrou; quanto ao pintor, já habituado à controvérsia, continuou a apresentar novos olhares sobre o mundo. Ficou, no entanto, a reafirmação de que há poderes que tutelam a liberdade artística e, dez anos depois, o “Déjeuner sur l’Herbe”, de Édouard Manet, foi simplesmente recusado pelo Salão, por imoralidade.


“Les Baigneuses”, de Gustave Courbet. Quadro exibido no Salão de 1853, em Paris


Manet tinha pintado duas mulheres, uma despida e que olha confiantemente para nós, outra, mais longe, em vestes transparentes (a primeira era a sua modelo preferida, a outra veio a casar-se com o escritor Émile Zola), ao lado de dois homens irrepreensivelmente de fato completo, sentados num piquenique no campo. O contraste entre elas e eles é realçado pela voluptuosidade tranquila da mulher que nos fita e que é iluminada pelo jogo de cores do quadro. Curiosamente, nem a versão divertida e posterior de Cézanne (que incluiu mais figuras, todas enroupadas), nem as de Picasso (que pintou duas centenas de esboços a partir deste quadro, quarenta dessas telas entre 1959 e 1962, incluindo algumas em que todas as figuras estão nuas) transmitem a mesma sugestão. Melhor do que os seus imitadores, a imagem da Manet sublinhava a luminosidade e a natural sensualidade da mulher que domina o quadro. Por isso, ou dado que a censura não anda com bom nome — pelo menos numa pequena parte do mundo, mais pequena do que se pode supor —, a acusação de obscenidade de que então Manet foi vítima, como o fora Courbet, parecer-nos-á agora uma simples zombaria. Como nestes casos, a designação de obscenidade, para reduzir uma das formas de sentir o erotismo, é uma interpretação de poder e tem o contexto de cada época em que é enunciada.

Francisco Louçã. "Vai Bocage contra o fanatismo dos bonzos" (excerto), in Revista Expresso, Semanário#2627, de 3 de março de 2023


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