domingo, 12 de março de 2023

Apague os seus podres online

 



COMETEU CRIMES? FRAUDES? ABUSOS? ESSAS NOTÍCIAS PODEM DESAPARECER. SAIBA COMO

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á frases que se dizem sem que se perceba o trágico que podem conter: “A internet não esquece.” Dizer isto é normalmente alertar para que se foi sentenciado ao eterno reviver de algum episódio que se preferia apagado. Mas não, a “internet” tem uma moral peculiar: possui uma memória infinita e permanente e não permite o perdão e o esquecimento. Quer se trate de algo falso ou verdadeiro, humilhante ou degradante — basta um qualquer ser do planeta efetuar uma simples busca, ou até por mera estimulação do algoritmo, para exibir o que se queria escondido. Tenho pena dos jovens que ficam marcados por causa de um qualquer episódio que se devia ter desvanecido na ressaca do dia seguinte, de uma parvoíce da idade que fica arquivada na net. E agradeço aos deuses da tecnologia ter tido uns bons anos de borga decadente e exuberante sem qualquer tecnologia. Caso tivessem coincidido no tempo, a “internet” não me teria permitido ficar um tipo relativamente ajuizado e estar a escrever um texto sobre essa intolerância. Tanta foi a asneirada que teria sido expulso da Urbi e estaria escondido no Orbi. Hoje, não se pode fugir à morte, aos impostos e quando se “cai na net”. É verdade que já se legislou em relação ao “Direito ao Esquecimento”, mas tal só funcionará em casos muito específicos, quando se quer apagar um qualquer link institucional (ou usado por métodos criminosos: fique até ao fim!). Quando uma adolescente quiser apagar uma “revenge porn”, ou qualquer catástrofe pessoal do género, é como parar o vento com as mãos. A viralidade com que esta se espalha torna impossível impedir a metástase. A desgraça a flutuar na net, ao contrário dos casamentos ou da fama no Instagram, é para sempre. Ou talvez não.

Vendo agora, retrospetivamente, havia aqui um nicho de negócio. Deus meu, quantos milhões não foram/são gastos anualmente em comunicação de crise para alterar “narrativas” quando gente de ou com poder caiu em desgraça ou pura e simplesmente foi atacada por boatos ignóbeis/verdadeiros. Pode minorar-se, falar com jornalistas, mudar o foco. Mas o que está na net... nada a fazer. Por lá ficará. E já se sabe: “A internet não esquece.” Ora, ora... Abuso, fraude, corrupção, processos, crime em geral? Há uma empresa que pode fazer desaparecer isso da internet. “Sejam artigos, blogsposts das redes, ou até erros de identidade.” Não é bem desaparecer, mas é quase. É “enterrar”. Os preços não são modestos, pois dá trabalho, e os resultados podem ser comprovados. “Apague o seu passado.” Alguns dirão que usam métodos enganosos. Mas que é isso hoje em dia? Onde está o lado certo?

Esta é mais uma das histórias da organização de jornalistas Forbidden Stories, que agrega profissionais do “The Washington Post” ou do “The Guardian” (de entre muitos outros) e que trabalhou numa fuga de 50 mil documentos internos de uma empresa espanhola, a Eliminalia, que tinha como missão isso mesmo: através de métodos desonestos e desinformação, prestar serviços aos seus 1500 clientes — de empresas, homens de negócios, celebridades, a criminosos condenados ou traficantes de droga — para “refazer a sua imagem online, alterar a sua pegada digital e criar uma nova perceção”. Ora, isso não é fácil. Para mais, atuavam em 50 países com recurso a seis línguas.

As táticas para alterar o passado digital de clientes iam desde fazer que certos links fossem apagados a, acima de tudo, enterrar as notícias negativas com centenas de notícias falsas positivas. Ora, o Google não é tão “parvo” assim, ao ponto de se deixar enganar por umas quantas balelas para retirar as notícias de grandes e conceituadas empresas jornalísticas do topo de busca e colocar fake news de média falsos. Mas dado que não tinham problema em infringir o copyright, em vez de CNN, usavam CNNNEWS com o mesmo template, a mesma letra, o mesmo aspeto, e postavam centenas de notícias positivas ou neutras para desorientar o algoritmo. Este é um exemplo apenas. Só na Suécia, foram detetados 600 sites associados a esta empresa, e estavam encobertos de forma a que quem andasse a analisar estas coisas não desse por nada.

É uma espécie de “guerra de informação”, pois para anular uma série de notícias negativas tinham de criar centenas de outras com o nome do cliente, a apontar para direções diferentes, usando a mesma aparência e supostamente a mesma fonte noticiosa, de forma que as notícias comprometedoras não ficassem nas primeiras páginas de busca do motor. Nos EUA, detetaram-se desde acusados de abuso sexual a empresários de tecnologia acusados de fraude. Na Itália, uma empresa de spyware que trabalhou para a Síria, ou um banco suíço que era suspeito de lavagem de dinheiro, ou um palhaço condenado por abusar sexualmente de uma rapariga menor. Dá para tudo. Um dos métodos da empresa era exatamente usar o “Direito ao Esquecimento” da UE, mas utilizando documentação falsa a exigir que jornais ou sites apagassem os links.

O “direito ao esquecimento” é um direito fundamental e a que ainda não demos o devido valor. Mas as empresas oportunistas que trabalham à margem de quem opera no espaço público sabem que nada há mais precioso do que a reputação. “Apague o seu passado”, limpar o cadastro digital é o sonho que até há pouco se pensou ser impraticável.

Desde que a investigação do consórcio Forbidden Stories foi tornada pública que a empresa desapareceu. A Eliminalia está ela própria com uma grave crise reputacional. Se este artigo for “abafado” por centenas de outros a dizer mal de mim, ou sobre gatinhos, com o nome Eliminalia, é porque ainda estão ativas.

Expresso Revista, Semanário#2627, de 3  de março de 2023

O MITO LÓGICO

LUÍS PEDRO NUNES

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