quarta-feira, 15 de março de 2023

Eugénio

 


PORQUE É QUE EUGÉNIO, CUJO CENTENÁRIO SE CELEBRA ESTE ANO, É MENOS ADMIRADO HOJE DO QUE HÁ UMAS DÉCADAS? PORQUE AQUELA DELICADEZA ENVELHECEU

T

udo lhe doía/ de tanto que lhes queria”, começa um poema de Eugénio de Andrade, publicado em “Obscuro Domínio” (1971), e que devo ter lido pela primeira vez por volta dos 18 anos. O poeta explica depois o que lhe doía, “a terra/ e o seu muro de tristeza”, “um rumor adolescente”, “não de vespas/ mas de tílias”, “o fogo reunido na cintura”. Aos 18 anos, cada poeta que eu descobria (na biblioteca lá de casa, nas livrarias, nos livros que os amigos liam) reformulava a minha ideia de poesia, uma ideia dogmática, ainda que fugaz. Isso aconteceu-me com poetas aos quais demorei algum tempo a chegar, por serem “difíceis”, ou me serem biograficamente difíceis (Herberto, por causa do tom, Ruy Belo, por causa do tema). Com Eugénio, ao invés, nenhum obstáculo, adesão imediata, a velha armadilha da “legibilidade”. Era, além do mais, o género de poeta que me interessava e ainda interessa: conciso, intenso, esquivamente autobiográfico. Durante anos, foi um dos meus favoritos, lembro-me bem de andar com aqueles livrinhos esguios no bolso.


       

                         Eugénio de Andrade, poeta (1923-2005)                                           ANTÓNIO PEDRO FERREIRA


O poema que citei no início, o emblemático “Véspera da Água”, tinha versos que eu achava à época tão bons que doíam, já nessa altura não gostava a sério de nada que não causasse perturbação, quando não sofrimento. O que é que doía ao “eu do poema”, como se diz? Doíam-lhe “os lábios/ instrumentos da alegria”, “os dulcíssimos melancólicos/ magníficos animais amedrontados”, “um verão difícil/ em altos leitos de areia”. E eu, mutatis mutandis, sabia ou julgava saber de que falava aquele poema que ia repetindo, em refrão, que tudo isso lhe doía, “de tanto que lhes queria”. Eram versos sobre a adolescência escritos na maturidade, a adolescência enquanto condição, não apenas enquanto época da vida. Por isso a “véspera da água” designava a “véspera de ser homem”.

Essa toada ficou-me na cabeça durante anos, tão densamente evocativa que nunca me incomodaram outros versos desse poema dos quais hoje não gosto, e nem sei se gostei alguma vez, ou se alguma vez me importei com isso, “a haste delicada de um suspiro”, “a harpa inacabada/ da ternura”, e assim por diante. Com a diversificação das minhas leituras e dos meus gostos, distanciei-me da poesia de Eugénio, esqueci-me um pouco dele, julgo que aconteceu o mesmo a mais gente da minha geração, e agora os novos não o invocam nem o imitam (quando eu comecei a escrever, imitar Eugénio de Andrade era a debilidade mais comum entre os jovens aspirantes). Mas não quero renegá-lo, nunca quis, Eugénio foi aliás muito amável quando o conheci pessoalmente, ouviu-me com atenção e mostrou-me, na casa do Passeio Alegre, a biblioteca mais arrumada que já vi, sem um livro desalinhado, as estantes dispostas com tanto cuidado como um poema em página.

Porque é que Eugénio, cujo centenário se celebra este ano, é menos admirado hoje (embora não, ao que sabemos, menos lido) do que há umas décadas? Porque aquela delicadeza, ou talvez a pose dessa delicadeza, envelheceu; porque a omissão identitária é hoje reprovada; porque a alguns leitores os poemas parecem sentimentais, ou vagos, ou repetitivos. Nenhum desses defeitos me impressiona, nem o último. Eugénio é um daqueles poetas que diz muito bem o pouco que tem a dizer. A certa altura, é certo, o déjà vu instala-se, como se fosse Eugénio a fazer de Eugénio, sempre os mesmos choupos, as mesmas dunas, as mesmas frésias, as mesmas maçãs. Mas quem se queixa disso quando gosta de Cézanne ou Morandi?

Não sei nem tenho como saber qual o lugar canónico de Eugénio, a posteridade é um enigma. Mas devo-lhe, sobretudo enquanto leitor, uma certa ideia de apuro e aprumo, de ritmo e eufonia, certas imagens, e o compromisso lírico, e a intimidade dos poemas connosco, poemas da velhice, outros da juventude, “de tanto que lhes queria,/ tudo tudo lhe doía”.

António Mexia. Expresso Revista. Semanário#2626, de 24 de fevereiro de 2023


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