quarta-feira, 14 de setembro de 2022

A cidade como ecrã

 



«Já nos Estados Unidos a contaminação da cidade pelo cinema e vice-versa não podia ter um aspeto mais prático, positivo e efetivo. O cinema entrou na cidade e a cidade entra no cinema e os dois emprestam-se um ao outro, ampliando e reinventando o território de ambos. Se a cidade do século XIX constituía um proto-ecrã, o ecrã constitui agora uma proto-cidade, a proto-cidade onde muitos querem viver» (Sol 2018, 20)

Na tese “A Imagem da cidade e o seu espaço-representado no videoclip da década de oitenta. Interferências norte-americanas na cultura arquitetónica contemporânea dita ocidental.” (Universidade de Lisboa, Faculdade de Arquitetura, 2018), Luísa Sol escreve que há toda uma nova atmosfera urbana, advinda das alterações impostas no final do séc. XIX, e que antecipou todo o ecrã contemporâneo - através da transformação da noção de espaço público e da emergência de uma nova consciência do individual (Sol 2018, 8). Essa nova consciência surgiu com o advento do capitalismo industrial que destruiu lentamente o domínio público, ao ampliar as expectativas e os interesses privados. O eclodir dos grandes armazéns e o seu sucesso fizeram da vida pública um lugar mais intenso e menos sociável, sublinhando sobretudo o papel da secularização. A secularização leva o ser humano a mistificar a sua própria condição – e a não ter tempo para olhar para qualquer outra coisa que não seja a sua eterna face num reflexo. Sol explica que Baudelaire em O Pintor da vida moderna afirmou que o indivíduo moderno deseja assemelhar-se somente àquilo que pretende ser, sem se deixar tocar pelo incontrolável e pelo incompreensível. E vive, por isso, em grande conflito com o facto de ser outro. O seu reflexo nunca corresponde ao sonhado. O resultado é o culto da personalidade, através do fascínio das roupas e da moda. Haussmann, contribuiu em Paris, para a produção desta sociedade que agrava a visão que cada um tem de si próprio - os grandes boulevards não escondem nada, o importante é aquilo que as pessoas têm para mostrar.

A metrópole da era industrial e o cinema surgiram num contexto muito próximo: «A cidade moderna, do comércio, dos boulevards, das vitrines e das arcadas sintetiza um modelo expositivo que determinaria a importância da imagem, estática ou em movimento, da visibilidade do indivíduo e da mercadoria, da sua circulação e transações.» (Sol 2018, 12)

A cidade e também a arquitetura, para Sol, funciona assim como o ecrã da modernidade e, gera, a necessidade do cinema. A cidade moderna trouxe a constante vontade das pessoas verem e serem vistas. A nova velocidade, as multidões de olhos e as largas avenidas esboçaram o ato de filmar e a permanente exposição dos percursos no espaço. Por isso, a arquitetura da cidade é a superfície ideal para se projetar tudo aquilo que as pessoas têm para exibir.

Luísa Sol revela ainda que os situacionistas já avisavam que a sociedade moderna estava contaminada e dominada por imagens. A imagem do mundo torna-se assim mais importante que o próprio mundo. Essas imagens são uma produtificação da vida quotidiana. E vai ser cada vez mais difícil separar a realidade da ficção. (Sol 2018, 20)


Ana Ruepp

Fonte: A FORÇA DO ATO CRIADOR. (2022). Retrieved 14 September 2022, from https://e-cultura.blogs.sapo.pt/a-forca-do-ato-criador-1345027


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