terça-feira, 17 de agosto de 2021

Por um planeta dos macacos

 


É MELHOR REVERMOS AS NOSSAS TESES GRANDIOSAS DE AUTOEXTINÇÃO. VAI SER COM IDIOTICE E MESQUINHEZ

A

tentemos nisto: as exuberantes florestas tropicais da América do Sul, nomeadamente a selva amazónica, surgiram apenas e só devido ao impacto na crosta terrestre do pedregulho que extinguiu os dinossauros — o famoso meteorito de 10 quilómetros de diâmetro que há 66 milhões de anos se esbardalhou na península do Iucatão, no México, e dizimou 75% das espécies e da flora que habitavam a Terra. Sem esse calhau não estaria a ler este texto. A vida por aqui teria seguido por outras vias e provavelmente não haveria macacos nus mais ou menos sapiens a dedilhar em teclados. Foi esse evento que permitiu que novos e variados ecossistemas surgissem. Não foi coisa de somenos. O impacto foi o equivalente a milhares de milhões de bombas nucleares em simultâneo, que produziram por todo o planeta terramotos e ondas de quilómetros de altura. Resumindo: o solo da Terra não só ficou mais fértil como aniquilou os grandes herbívoros que impediam as florestas de se expandir.

Estou a sacar a parte séria disto a um estudo recente de uma paleobotânica colombiana citado na revista “Science” e do qual podemos tirar duas lições: é bem provável que este planeta recupere bem à nossa breve presença por cá — seja mais umas dezenas, centenas ou milhares de anos; há quem diga milhões. Mas posso apostar que tal não vai acontecer, dada a burrice geral que grassa. Talvez seja possível garantir é que o planeta volte a regenerar-se. É sim de rever as teses de grandes extinções humanas com megabombas e cogumelos nucleares ou outras hipóteses plasmadas na cinematografia de catástrofe da Guerra Fria ou ataques de extraterrestres com naves sempre bem parqueadas sobre cidades dos EUA.

A nossa extinção nem terá o “tchan” de um filme baseado no Dan Brown que passa em loop nas TV: dar-se-á devido a um mercado de animais vivos, com um lagarto da Indonésia na sua jaula imunda a fazer um cagalhoto para cima de um sagui do Panamá. Cria-se aí uma mutação viral, que passa para um chinês que espirra para outro que apanha um comboio para Pequim que espirra para outro que voa para Itália. Soa familiar? Claro que não. Se isto alguma vez acontecesse, era óbvio que os humanos, na sua imensa sabedoria, poriam fim a tais bombas biológicas, a meteoritos pandémicos criados por incúria própria. Isso era se fosse num filme. A realidade é mais parva do que um filme de ficção científica dos anos 90. Como prever que meses mais tarde a um evento como o descrito haveria quem não quisesse tomar uma vacina que previne a ação do vírus porque pode ter efeitos secundários estatisticamente menores do que um comprimido para a dor de cabeça? Seria inverosímil.

Muitos cientistas, e bem, tentam encontrar inteligência nos animais para dar esperança aos humanos. Os macacos servem e serviram como modelo comportamental para inferirmos algo sobre nós. Ainda esta semana li que, “após uma catástrofe, os macacos tornam-se mais tolerantes com os outros, até com os seus rivais”. É um daqueles títulos que, em plena pandemia, nos faz carrear esperança para nós. Em setembro de 2017, reza a notícia, após o furacão Maria ter arrasado Porto Rico e quando Trump lançava lá rolos de papel higiénico aos que tinham ficado sem nada, os cientistas continuavam a estudar os habitantes símios de uma pequena ilha não povoada mas dominada por macacos, cujo comportamento é acompanhado há décadas. O furacão tinha destruído boa parte da vegetação da ilha de Cayo Santiago. Mas a atitude dos macacos havia sofrido alterações significativas. Passavam menos tempo com o seu círculo habitual para o dedicar a meros conhecidos, estranhos e até antigos rivais.


Um grupo de macacos na ilha Cayo Santiago, Porto Rico, depois da passagem do furacão Maria, em setembro de 2017. 
Imagem: Lauren Brent


E isto é extraordinário, digo eu. Os cientistas esperavam que os macacos fechassem os seus clãs ao exterior para reagir à escassez de comida. Mas fizeram o contrário: expandiram as suas ligações com outros indivíduos para partilhar os recursos limitados. Saltando para a conclusão, constata-se que as relações com os outros e a tolerância social ampla pode ser a chave para sobreviver a desafios extremos. Não o egoísmo e a intransigência. Ora, neste, como noutros casos, ou somos os macacos tolerantes ou o Trump — súmula do humano egocêntrico e narcísico — a atirar papel higiénico para uma população que desprezava apenas para a foto que julgava que o iria beneficiar.

Ignoramos os cientistas que avisam que este pode nem ser o “tal” vírus fatal. Não estamos a “retirar lições” algumas. Os mercados de animais selvagens voltaram. Há países tão afetados pela pandemia e dirigidos por negacionistas, como o Brasil, que são “celeiros de estirpes”. Deixamos que a falta de solidariedade e o egoísmo determinem a produção e distribuição de vacinas. Ignoramos que as teorias da conspiração dos Facebooks possam destruir a reputação dessas vacinas com o apoio da inépcia dos líderes políticos. Faz sentido?

Nas causas da extinção humana, a idiotice é sempre um dos fatores determinantes: desde a autoaniquilação nuclear até às alterações climáticas induzidas por nós. Ora, a possibilidade de assistirmos a uma extinção por vírus que podia ser controlado mas que é sabotado por teorias absurdas criadas por outros humanos ultrapassa todas as escalas de cretinice. Por isso, apelo a que entreguem o comando do planeta aos macacos da ilha de Cayo Santiago. Neste momento de aflição necessitamos de uma liderança solidária e tolerante.

Luís Pedro Nunes. Mito lógico - Por um planeta dos macacos. In E-Revista Expresso, Semanário #2529, de 16 de abril de 2021



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