HÁ UM MODO INTERESSANTE DE FORÇAR UMA CERTA VERDADE ACERCA DA NOSSA CARA, SOBRETUDO AQUELA QUE, DEPOIS DOS 30, SE DIZ SER AQUELA “QUE MERECEMOS”
G
aëtan, durante muitos anos, era para mim nome de um tradutor, um nome que ouvia lá em casa, porque esteve ligado à Ulisseia, com a qual o meu pai também colaborou. Dele li mais tarde versões de Rimbaud, Calvino, Yourcenar, Tabucchi. E lembro-me de que fazia parte de uma categoria de pessoas de quem se falava pouco mas sempre bem. Descobri depois que o Gaëtan Martins de Oliveira dos livros era o artista que assinava Gaëtan, embora só recentemente, já depois da sua morte, tenha visto, na Sociedade Nacional de Belas-Artes, uma mostra individual de desenhos.
No catálogo da exposição, os curadores Alberto Caetano e Rui Sanches definem Gaëtan como um “verdadeiro flâneur e um espírito livre”, a sua atitude como “elegante, inteligente, generosa e bem-humorada”, a sua presença no meio artístico como “discreta e marcante”. Nas histórias da arte portuguesa aparece quase sempre em toca-e-foge, uma alusão, uma data de nascimento, uma colectiva (como a nova-iorquina “Drawing Towards a Distant Shore”). Tendo visto poucos trabalhos ao vivo, vi agora estes retratos. E os retratos pedem que digamos coisas acerca deles, impressões, conjecturas, interpretações.
Concentro-me nos auto-retratos sem cor, feitos a partir de inícios dos anos 1980, e que formam ciclos intitulados “Algum Retrato”, “Contra Mundum” ou “A Arte da Fuga”. Ainda que Gaëtan não reivindicasse o termo “auto-retrato”, estas são, sem qualquer dúvida, representações do seu próprio rosto, visto ao espelho. Sabemos, além do mais, que são desenhos com a mão esquerda, embora ele fosse destro. A ideia é que o auto-retrato seja imperfeito, aproximativo, não-virtuoso, que o artista se surpreenda ao retratar-se, como nós nos surpreendemos ao ver os desenhos, que se encontre consigo mesmo, que se descubra ou invente, que faça do documento uma ficção, uma “figura de interpelação ao espectador”. Porque, se uma maneira de classificar estes retratos é chamar-lhes variações sobre o mesmo rosto (magro e anguloso, testa alta, olhos amendoados, nariz forte, barba cerrada) e outra é apresentá-los como uma colecção de rostos, acontece serem todos rostos do autor.
Quando estive na exposição, tentei encontrar uma palavra para cada um dos retratos que ia vendo. Uns dias depois escrevi essas palavras num caderno. E umas semanas depois voltei a escrevê-las, a lápis, no catálogo, por baixo de cada imagem. Em “Contra Mundum”, sequência de nove desenhos, a minha primeira anotação definia assim os nove Gaëtans: “reflexivo”, “ansioso”, “arrependido”, “entediado”, “patusco”, “hedonista”, “agreste”, “desconfiado”, “malicioso”. Mas quando voltei a eles encontrei outra tipologia igualmente válida, que anotei, e que incluía “atento”, “manhoso”, “jocoso”, “austero”, “surpreendido”, “malévolo”, “indeciso”, “colérico”, “intenso”, “descontente”, “suspicaz”, “perscrutador”, “altivo”, “maquiavélico”, “esquinado”. Uma maneira de descrever esta instabilidade é dizer que estamos perante “máscaras” ou “poses”. Mas uma máscara, até na tradição teatral e carnavalesca, é um tipo de personagem ou um símbolo. E uma “pose” é uma máscara sem adereços. Claro que as poses tendem a ser mais ambíguas do que as máscaras, razão pela qual andamos há séculos a discutir certos olhares e certos sorrisos enigmáticos; mas suponho que, em geral, quem faz uma pose sabe que pose está a fazer, o que não me parece ser aqui o caso.
Tomar-se a si mesmo como objecto talvez seja um acto narcísico, mesmo quando é um narcisismo melancólico. Mas há um modo interessante de forçar uma certa verdade, não forçosamente agradável, acerca da nossa cara, sobretudo aquela que, depois dos 30, se diz ser aquela “que merecemos”; esse modo consiste em registar o nosso rosto como se fosse o de um desconhecido, desenhá-lo em traços rápidos, em esboço, com feições delineadas, linhas expressivas, saturadas, e garatujas anárquicas. Quando Gaëtan, num dos seus títulos (que invocam diversos referentes culturais, Dante, Vieira, Bach, Almada, Truffaut), vai buscar o “d’après nature”, o retrato como relação fiel e verdadeira da natureza, percebemos que está a ser irónico. Porque não há aqui natureza, apenas a natureza humana, aquela que sabemos o que é quando não nos perguntam.
Pedro Mexia. Fraco Consolo - A cara que mereces in E-Revista Expresso, Semanário#2544, de 30 de julho de 2021
Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia
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