OS ATLETAS NÃO CORREM APENAS COMO DANADOS: CORREM COMO DOADOS. E NESSA DOAÇÃO TOCAM AQUELE QUINHÃO DE LIBERDADE PURA, DE GRAÇA E DE SENTIDO QUE JUSTIFICA TODOS OS ESFORÇOS
O
s mais pessimistas dizem que o ancestral espírito de jogo — essa expressão jubilosa, desinteressada e quase ingénua que torna o jogo uma experiência humana tão importante — está completamente ausente do desporto de alta competição. Ali se encontra apenas a eficácia da performance e do cálculo face aos objetivos traçados. E se a isso acrescentarmos as rivalidades exacerbadas, os tribalismos identitários dos estádios e a dimensão do business que lhe está associada, poder-se-ia pensar que era assim. E, contudo, a verdade é que aquilo que torna os jogos de alta competição atraentes é ainda a porção do espírito de jogo que eles mantêm. No clássico ensaio “Os Jogos e os Homens” (1958), o antropólogo e escritor Roger Caillois propõe esta definição de jogo: o jogo é uma atividade livre (que se pode realizar ou não), circunscrita no espaço e no tempo, que se desenvolve num quadro normativo (não há jogo sem regras), que é improdutiva (não produz propriamente bens), que é indeterminada quanto ao seu desfecho (à partida não se sabe quem ganhará ou como) e que consensualmente pertence a um nível segundo, a um plano destacado em relação à realidade habitual (e, nesse sentido, há, por exemplo, efetivas semelhanças entre o jogo e o rito).
Existem talvez três grandes razões que permitem que associemos ao jogo uma espécie de reencantamento do mundo. A primeira refere-se ao impacto de uma verdade que um número sempre maior de físicos garante estar na base do próprio universo: não o ditame mecânico de uma necessidade, mas um princípio lúdico e aberto de inventividade. A razão do universo é mais plástica e poética do que determinista. E a experiência do jogo como que a espelha em modo perfeito, nesse atuar de uma liberdade de proporções cósmicas, mas na qual também nos reconhecemos. A nossa própria humanidade é um jogo de liberdade que cada um é chamado a protagonizar. Nas suas “Cartas” sobre a educação estética do homem, Friedrich Schiller dizia isso mesmo: que a nossa humanidade se joga inteiramente aí e que isso nos qualifica como humanos. A segunda razão tem a ver com as afinidades inquebrantáveis que ligam a experiência do jogo à experiência da dádiva. Trata-se de um erro interpretar a natureza competitiva do jogo como se esta eliminasse a possibilidade do encontro respeitoso e solidário com o outro. Pelo contrário, a confrontação desportiva soçobra sem a estima do adversário. O jogo — e da mesma maneira a dádiva — instaura uma aliança que se traduz numa relação de reversibilidade: o que doa pode vir mais adiante a precisar; o que ganha pode um dia ser perdedor e vice-versa. A dádiva e o jogo estabelecem assim um trânsito consciente entre estes verbos: dar, receber e devolver. Num caso como noutro, a energia que tudo move é a generosidade da entrega. O que doa e o que joga que fazem afinal? Aprendem a sair de si. Por isso, os atletas em campo não correm apenas como danados: correm como doados. E nessa doação tocam aquele quinhão de liberdade pura, de graça e de sentido que, esse sim, justifica todos os esforços. E justifica igualmente a nossa irremovível emoção de espectadores. O terceiro e último motivo reside na distinção entre jogo finito e infinito. O jogo finito é aquele que se joga com a finalidade de ganhar um desafio concreto e tudo termina ali. O jogo infinito, porém, é aquele cujo objetivo é continuar a jogar. Recordo-me da frase com que o jogador Francesco Totti se despediu dos relvados, em 2017: “Esperava morrer antes.” No fundo, o que faz dos jogos uma realidade tão galvanizadora e universal é essa resiliência com que os atletas se aferram a um infinito.
José Tolentino de Mendonça. Que coisa são as nuvens - Jogos Infinitos in E-Expresso Revista, Semanário#2544, de 30 de julho de 2021
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