O texto mais antigo é de 1933, o último de 2014. Ideias sobre o cinema, que Oliveira começou por considerar um processo sobretudo fotográfico e que viria a conceber como tendencialmente literário
TEXTO PEDRO MEXIA
D
Ainda assim, seria bizarro ignorar o seu mérito enquanto cineasta. “Ditos e Escritos”, editado pela Casa do Cinema da Fundação de Serralves, reúne textos muito diversos e muito esclarecedores, conferências, aforismos, poemas, discursos, depoimentos, artigos na imprensa portuguesa e estrangeira, até anotações no verso de postais ou numa página de jornal, documentos úteis e importantes, se bem que menos memoráveis, em termos estilísticos, do que a “Obra Escrita”, de João César Monteiro. O texto mais antigo é de 1933, o último de 2014, e a arrumação, não-cronológica, identifica linhas de continuidade, ideias sobre o cinema, que Oliveira começou por considerar um processo sobretudo fotográfico (a Casa do Cinema revelou recentemente a sua faceta de fotógrafo), e que viria a conceber como tendencialmente literário.
Há neste conjunto “uma ideia de cinema”, ou várias ideias que se integram num todo coerente. Uma dessas ideias é que o cinema é imaterial, quer dizer, é um processo material (actores, cenários) que produz imagens imateriais, fantasmáticas: “Assim, qualquer acontecimento verídico filmado e projetado no ecrã não é já a realidade desse acontecimento, mas simplesmente o fantasma dessa mesma realidade (...)”. Uma segunda ideia é que, em cinema, o termo “indústria” diz respeito às máquinas, à película, ao laboratório, mas nunca aos filmes. A terceira ideia é que “tempo é movimento”, ou seja, que acontecem coisas na imobilidade da passagem do tempo, e que a explicitação do tempo no cinema nos torna mais atentos àquilo que acontece. Quarta ideia: todo o documentário pode ser uma forma de ficção, incluindo a saída dos operários da fábrica dos Lumière. Quinta ideia, que aparece numa apologia do muito contestado “Branca de Neve”: o movimento tanto nasce da acção como da palavra. Sexta ideia, contra os deslumbrados: “O Cinema é o Pai do audiovisual e nunca foi nem poderá ser filho do videoclip.” Sétima ideia: só se é absolutamente moderno regressando às origens, aos primitivos russos, alemães, escandinavos. Oitava ideia: os filmes “são uma abstração que resulta da passagem de uma verdade a uma figuração indireta e relativa da verdade”, sendo que a “emoção”, em cinema, consiste nessa abstracção. Nona ideia: “uma imagem num só plano fixo e com movimento no interior, tendo como banda de som qualquer frase intimamente ligada à imagem” é o exemplo máximo de um “rigor extremo”. Décima ideia: o cinema é ilusão, mas não ilusionismo. Décima primeira ideia: quando os actores falam para a câmara estão a cultivar a cumplicidade com o espectador, não a distância brechtiana. Décima segunda ideia: o cinema é um enigma, porque não diz respeito à realidade visível, mas à verdade fugidia. É um pouco mais do que um decálogo: os 12 mandamentos de Oliveira.
Humanista cristão, discípulo da geração da “Presença”, o realizador rejeitou sempre o cinema-negócio do capitalismo e o cinema-propaganda ao estilo soviético-fascista, preferindo um “cinema-cinema”. Essa definição tautológica depende da resposta a uma pergunta que vem de 1895: “É o cinema uma arte? A arte existe? Se existe, o cinema será arte, na medida em que todo o cinema interpreta ou um sonho, uma ação concreta, ou um voo da imaginação.” Note-se a impaciência irónica, a que se segue uma definição prática dessa arte, uma arte que se queria alheia a malabarismos técnicos e a dirigismos culturais. E aqui entra a questão da especificidade do cinema português, uma “aventura permanente” de ímpetos e impasses, da Invicta Film ao Cinema Novo, e que tem sobrevivido a regimes, governos, hostilidades. Oliveira, cujo “Douro, Faina Fluvial” foi pateado na primeira exibição pública (era demasiado veloz e mostrava demasiados pobres, o oposto do que diriam os detractores tardios), afirma que não existe “má vontade” contra o cinema português, mas má-fé. Porque um cinema que produziu Rocha, Reis, Monteiro ou Costa não é, em lado nenhum, um cinema insignificante.
Entre os homenageados nesta colectânea (Renoir, Buñuel, Godard, Fellini, Kiarostami, Sokurov, a “austeridade moral sem orgulho” de Dreyer) há também lugar para alguns críticos, como Sadoul ou Daney. E o livro recupera uma curiosa carta a Gilles Deleuze, de 1991, seguida de um esclarecimento. Lembremos que Deleuze publicara “A Imagem-Movimento” e “A Imagem-Tempo”, e que esse segundo tomo não andava longe das preocupações de Oliveira. Mas o suposto desentendimento que a carta gerou não teve a ver com o tempo, antes com o conceito de “povo”, que o cineasta encaminhou para considerações quase-teológicas. Deleuze tinha dito, a propósito de Paul Klee: “Não há obra de arte que não se dirija a um povo que ainda não existe.” E, quando procura atenuar a hipotética polémica, Oliveira assume a relevância desse conceito eminentemente oliveiriano que é filmar para “um povo [um público] que ainda não existe”. Aliás, já o tinha escrito em 1963: “O público é sempre o último a compreender coisas, embora seja o que direta ou indiretamente mais beneficia. Parece bronco e insensível. Ele é sobretudo lento. Mas os jovens cineastas (e não apenas eles) estão com pressa, impacientes.” Chegado ao novo século, em 2000, voltará a garantir: “O cinema não foi, nem sequer começou.”
Pedro Mexia. Culturas - Cinema, cinema in E-Revista Expresso, Semanário#2547, de 20 de agosto de 2021. O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.
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