PERCEBEMOS QUE O IMPULSO FICCIONAL E O NÃO-FICCIONAL SE ASSEMELHAM, COMO QUANDO O FOLHETINISTA SEGUE UM CORTEJO FÚNEBRE POR GOSTO DA EFABULAÇÃO
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As “Noites...” nasceram de um punhado de artigos dominicais que o jovem Dostoievski escreveu em substituição de um amigo. Crónicas sobre uma cidade “doente”, “estranha” e “sombria”; sobre o tédio, a preguiça e a canícula; sobre Gogol quando Gogol começou a ser contestado; sobre o ocidentalismo, esse “fato de bom corte”; sobre os europeus que não compreendem a Rússia. À época, Dostoievski ainda é “de esquerda” e virá até a ser condenado à morte (e depois amnistiado) por actividades subversivas, mas o seu esquerdismo já vai vacilando. O mais interessante, no entanto, é o modo como estes textos redigidos por motivos económicos servem para apresentar figuras e personagens que conhecemos das novelas e dos romances: o espectador comovido, o sonhador incapaz, os homens que gozam por antecipação e não por consumação, as raparigas indomáveis mesmo quando submissas. É nesses textos de jornal que percebemos que o impulso ficcional e o não-ficcional se assemelham, como quando o folhetinista segue um cortejo fúnebre por interesse documental e gosto da efabulação.
“Diário de um Escritor”, ao contrário do que o título sugere, não é um diário, antes um conjunto de colaborações com a imprensa, incluindo os artigos que Dostoievski publicou originalmente num jornal que editou nos últimos anos de vida. Mantém-se a vontade e a voracidade de abordar todos os assuntos (o suicídio, as crianças, os direitos das mulheres, a utopia, a destruição das florestas), mas agora isso faz parte de um projecto, de um “laboratório criativo”, como lhe chamou Rosamund Bartlett. O escritor não procura, como dantes, os seus leitores, porque já os tem, e conversa com eles. E ao jovem revolucionário sucedeu-se o conservador, o defensor da ortodoxia, o eslavófilo. Em ‘O meu paradoxo’, pergunta: “Porque é que nos devemos afadigar para merecer a confiança da Europa? A Europa alguma vez confiou nos russos?” E em seguida acrescenta que se as pessoas que querem uma russa “civilizada” se tornam “europeus de esquerda”, então há que dizer que os europeus de esquerda detestam a civilização russa, alguns detestam até a civilização europeia. E que isso, paradoxalmente, é bastante eslavófilo.
Outros textos optam por um estilo coloquial, digressivo, às vezes ligeiro, ou melancólico, ou indignado, recorrendo a argumentos de autoridade mais biográficos e afectivos do que intelectuais. Um dos textos memoráveis é uma evocação de Pushkin, definido como o poeta da alma russa e, por isso, da alma universal. Outro é o elogio de “Anna Karénina” enquanto romance que não rasura a “culpa” e a “transgressão”, entidades morais que nenhum reformismo social conseguirá eliminar. E outro ainda é uma crítica aos tribunais que absolvem os réus porque consideram que o “meio” determinou as suas acções, como se não houvesse livre-arbítrio mas apenas estruturas sociais e inevitabilidades comportamentais.
“Noites de São Petersburgo” é uma curiosidade, enquanto o “Diário de um Escritor” inventa um género literário; mas ambos têm momentos que lembram os grandes romances pela intensidade, o patético, as inclinações sentimentais e metafísicas, o profetismo e a exasperação. Por inesperado que pareça, a ficção de Dostoievski está também no seu jornalismo.
Pedro Mexia. Fraco Consolo - Dostoievski jornalista in E-Revista Expresso, Semanário #2546, de 13 de agosto de 2021. Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia
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