quinta-feira, 20 de agosto de 2020

O muro de Berlim

 



Noite de 13 de Agosto de 1961, a construção do muro de Berlim, uma surpresa.

Noite longa que se estende por muitos metros e depois décadas,
uma noite de ideologia e básico betão.

Braço esquerdo separado do direito, um corpo assim-assim,
maneta e perneta — e com cérebro a funcionar a menos de metade;
pois cortado em dois o que é um fica de imediato menos de meio;
nada nos organismos ou cidades funciona como na matemática dos simples;
tudo é perfeitamente assimétrico e imprevisto, até em Berlim.

Duas inteiras metades desencontradas como no mito de Platão
que, quando finalmente se encontram, juntas, ficam um só sujeito,
amorosamente e para sempre —
assim se poderia descrever, em tom meio tonto de conto de fadas,
o dia 9 de novembro de 1989, dia da queda involuntária do muro —
a vontade foi toda do humano, não da engenharia.

Mas voltemos a 13 de Agosto de 1961:
operários avançam em segredo, cada um na sua parte do muro.
Quem atua no seu metro e meio por quatro de altura
não poderá entender o muito quilómetro igual em redor.
Um fordismo em cabeça errada: cada um com igual tarefa
mas sem noção da larga máquina vertical instalada;
uma simples máquina de separar que funciona assim:
sem motor e parada.
Não vês nem avanças: barreira para pernas e visão, o muro.

Números de uma bruta barragem para humanos;
sólidos cidadãos situados agora num lado do espaço, como árvores;
nada de água ansiosa por caminho e circulação,
tudo é humano e numérico. Aqui vão, pois, factos e números:
66,5 km de gradeamento metálico e
trezentas e exatas duas torres de observação.

(A construção faz-se vertical e alta
para de cima, quase do céu, se apontar melhor.
Schießbefehl ou “Ordem 101”: atirar para matar.
Quem humano tenta atravessar, humano mas morto fica a meio,
entre os dois lados,
como se quieto em definitivo ainda assim hesitasse.)

Também, a assinalar, 127 redes metálicas electrificadas
com essa eletricidade que provoca no corpo um súbito tremor
e uma mínima luz última no coração dos crentes.

E ainda um sinistro som de alarme
feito por um qualquer compositor obsessivo —
canção monocórdica de perigo e ameaça.

E AINDA UM SINISTRO SOM DE ALARME FEITO POR UM QUALQUER COMPOSITOR OBSESSIVO CANÇÃO MONOCÓRDICA DE PERIGO E AMEAÇA

 

(Imaginar um mundo sem música alguma, só com sirenes de alarme
a instalar o cuidadinho e o schiu obediente e quieto no cidadão,
pesadelo político e sonoro.)

E ainda 255 pistas “para ferozes cães de guarda”.

Mas não se trata de mercadoria, mantimentos e máquinas modernaças,
o contrabando decisivo não tem largura nem comprimento ou peso.

O muro compacto de Berlim nada de material deixa passar
excepto muito por cima aeronaves com interna publicidade bacoca
e um puro pó levado pela pura brisa que anuncia,
no éter que se aloja junto aos ouvidos na parte Leste,
a televisão quase a cores
e uma democracia mais ou menos em boas condições materiais.

Um pó repleto de bits, eis o ilustre pó da década de sessenta e setenta
na cidade partida em dois de Berlim.
Não se trata de fisicamente bombardear a base
mas de nela instalar a dúvida, e no lado oposto uma certa esperança.

Nem ecrãs para ver a verdadeira cor do branco são decisivos;
como fantasmas dos filmes de ficção B,
os bits com informação livre e sem localização no espaço
atravessavam o alto e muito compacto muro de Berlim
como se o alto e muito compacto muro de Berlim
fosse afinal baixo e pouco ou nada firme.

Os bits no chão avançam como tanques e no ar como aviões
mas não podem ser abatidos pela pontaria material e terrestre.
Só fechando olhos e ouvidos se evita o som
— sem espaço nem recipiente — que inquieta e informa.

Será possível a informação vir também em tacto
e não apenas em som e imagem?
A resposta é sim: o tremor que desloca debaixo dos pés a terra
é disso bom exemplo: não precisas de frase nem ecrã
para perceber que a terra bem te faz tremer e muito te ameaça.

Mas sim: em nove de novembro de 1989
a terra inteira em Berlim treme, e de posição por uns tempos muda.

Mas tudo o que muda em pouco tempo mudará de novo.
Assim a história ensina e a atualidade mostra:
nenhum solo sem muro ficará assim para sempre.

Gonçalo M. Tavares. O muro de Berlim. E-Revista Expresso.  Semanário #2494, 15 de de agosto 2020



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