quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Artigo | A era da vingança

 


Manifestação, em Londres, contra o movimento de extrema-direita, Frente Nacional, no dia 13 de agosto de 1977
Chris Steele-Perkins/Magnum/Fotobanco.pt


Este é o sentimento preponderante do nosso tempo, do novo milénio. Há milhões de vozes que combatem a intolerância com intolerância

TEXTO ALBERTO MANGUEL*


“Sendo a vida tal como é, sonha-se com vingança”
Paul Gauguin




Na terceira das mil e uma noites, Xerazade conta esta história:

“Um velho pescador, muito pobre, tinha o hábito de lançar as suas redes somente quatro vezes por dia. Certa tarde, depois de lançar três vezes as redes e não recolher mais do que lama e pedras, pediu a Deus que lhe perdoasse a impaciência e que se lembrasse de que o lançamento seguinte seria o último do dia. Lançou então as redes pela quarta e derradeira vez. As redes ficaram pesadas, e quando o pescador as puxou viu que tinha apanhado uma pequena garrafa de cobre. Curioso para ver o que lá haveria dentro, o pescador usou a faca para a desarrolhar e despejou a garrafa. Qual não foi o seu espanto quando viu o espesso fumo a aglomerar-se como uma nuvem e a desenhar a figura de um demónio ou génio colossal, que se ergueu sobre o pescador e disse:

— Eu sou um dos espíritos heréticos que o Rei Salomão aprisionou numa garrafa como castigo por não nos submetermos à sua vontade. Lançado para o fundo do mar na minha prisão, fiquei lá durante mil anos e prometi todas as riquezas do mundo a quem me salvasse — mas ninguém veio. Nos mil anos seguintes, prometi toda a sabedoria do mundo a quem me salvasse — e mesmo assim ninguém veio. No terceiro milénio, prometi realizar três desejos a quem me salvasse — e mesmo assim ninguém veio. Afundei-me então numa fúria violenta e disse a mim mesmo que mataria quem me salvasse. Prepara-te então para morrer, ó meu salvador!”

Talvez também nós tenhamos chegado a este quarto milénio: ao ponto em que a paciência chega ao fim. Agora, com a vantagem da experiência adquirida, reconhecemos os muitos indícios de que assim aconteceria. Em todos os lugares e em todos os tempos, a nossa história foi de abuso, injustiça e crueldade, de tal modo que, lendo-a agora, me pergunto como é que esta fossa de ódio que construímos ainda não se agigantou e ainda não nos afogou. Ao longo de séculos, exatamente como o génio, as vítimas disseram aos seus carrascos: deixem-nos ser livres, e todos haveremos de singrar; deixem-nos ter voz, e todos seremos sábios; deixem-nos ser iguais, e todos tentaremos viver juntos numa possível harmonia racional. Só que agora já não. Agora, finalmente, as vítimas decidiram que o tempo de ser paciente chegou ao fim. Lembram-se do título do livro de James Baldwin, “Da Próxima Vez, o Fogo”[1]? Esta é a próxima vez.

Uma das formas de visualizarmos a ficção a que chamamos história — como imaginaram ingenuamente Ariel e Will Durant — é através das inclinações típicas de cada época, da disposição que aparentemente atravessa uma década, um século, uma era: a era da razão, a era da incerteza, e assim por diante. Creio que o sentimento preponderante do nosso tempo, do novo milénio, nos obrigará a chamar-lhe a era da vingança. Hoje, milhões de vozes parecem gritar cada vez mais alto: “Chegou a nossa vez.” Não estão a pedir, não querem convencer, não exigem justiça com paciência e razoabilidade. Estão apenas a incendiar o caminho para chegarem à frente. Certamente não usam o fogo para iluminar quem quer que seja. Combatem a intolerância com intolerância. E não querem camaradagem.

Não sou defensor da tolerância no sentido em que tantas vezes usamos esta palavra. (“Temos de ser tolerantes para com os homossexuais, porque a sua sexualidade se encontra num estado de aprisionamento”, disse um eminente psiquiatra argentino em 1992; “Temos de tolerar os judeus, senão eles vão arvorar-se nos mártires do mundo”, defendeu Martin Heidegger em 1933.) A tolerância, na aceção positiva, apontava para uma atitude anti-hierárquica; agora supõe frequentemente uma hierarquia, alguém que condescende em “ser tolerante” relativamente a outra pessoa e pede que lhe agradeçam por isso. A tolerância é uma espécie de filantropia que acaba por se destruir a si mesma. Como escreveu Pessoa nos seus ‘Mandamentos’, “sê tolerante, porque não tens a certeza de nada”. Mas também a intolerância é autodestrutiva. A intolerância é uma forma de suicídio.

Uma estátua do padre António Vieira foi vandalizada em Lisboa. 
Mas derrubar estátuas não fará desaparecer os factos históricos que levaram a que tais estátuas fossem erigidas
PHAS/UNIVERSAL IMAGES GROUP VIA GETTY IMAGES




Neste sentido, tanto a tolerância como a intolerância recusam a ideia de igualdade. Não é possível ser-se tolerante — ou intolerante — relativamente a alguém que tenha os mesmos direitos e as mesmas responsabilidades. A história confirma isto mesmo, à revelia do mote esperançoso da Revolução Francesa. Parece que estamos condenados por entendimentos, ou desentendimentos, firmados antes de termos nascido e dos quais somos herdeiros, quer queiramos quer não. A história faz com que acreditemos que o pescador está condenado aos costumeiros infortúnios da sua classe, tal como Salomão e o génio, que herdaram os papéis de rei e de escravo. Em “The Muse of History”, o poeta Derek Walcott diz: “Quem é que no Novo Mundo não sente horror pelo passado, quer o seu ancestral tenha sido vítima ou carrasco? Quem é que, em silêncio, nas profundezas da consciência, não pede perdão ou vingança?”

Intolerância gera intolerância. Quando foi despromovido por Perón de bibliotecário municipal a inspetor de galinhas num mercado de Buenos Aires, Jorge Luis Borges reagiu assim: “As ditaduras geram opressão, as ditaduras geram subserviência, as ditaduras geram crueldade; mais abominável é o facto de gerarem estupidez.” A intolerância, sendo incapaz de perceber a riqueza individual e movendo-se apenas dentro de estereótipos, é uma forma de estupidez. Pertence à mesma categoria do preconceito, em que o processo racional é ultrapassado por um cliché, uma idée reçue. 

Parece que estamos condenados por entendimentos ou desentendimentos firmados antes de termos nascido e dos quais somos herdeiros, quer queiramos quer não

Contudo, da mesma maneira que a reação do génio ao seu salvador, a intolerância desta era vem de pessoas que chegaram ao seu limite. Podemos não sentir culpa pelos pecados dos nossos antepassados, nem pelos dos nossos contemporâneos, mas como a regra estabelecida é identificar os indivíduos pelas características de um determinado grupo — o método do racismo — então esses indivíduos, por sua vez, identificam-nos a nós exatamente da mesma maneira. Os estereótipos são sempre alimentados pela ignorância. E a ignorância, como definiu Montesquieu, é a mãe da tradição. Para Salomão, o génio é apenas, tipicamente, um dos escravos; para o génio, Salomão é apenas um dos opressores. Se durante séculos os negros foram vistos por membros da sociedade branca como manadas de gado, os membros da sociedade branca são agora vistos pelos negros (de acordo com a descrição de Louis Farrakhan) como “um bando de lobos”, e qualquer ato que atinja os negros é visto como parte de uma atitude racista dominante. A sociedade estabeleceu generalizações como se fossem a norma, e agora as generalizações são a norma. “A norma nunca é normal”, escreveu Mudrooroo, romancista aborígene australiano.

Em certa medida, o preconceito é uma questão de pronomes. Acentuar o ‘nós’ é exclusivo: ou seja, ‘nós’ significa ‘tu não’. Vejamos o que escreveu Rudyard Kipling em 1919: “Todas as boas pessoas concordam,/ E todas as boas pessoas dizem,/ Que todas as pessoas amáveis, como tu e eu, são Nós/ E todos os outros são Eles:/ Mas se atravessares o mar,/ Em vez de te atravessares no caminho,/ Talvez acabes por (pensa nisso!) olhar para Nós/ Como apenas uma espécie de Eles!” 

Muitos daqueles que ocupam lugares de poder parecem esquecer-se de que a formação de qualquer grupo com o objetivo da exclusão — negros, mulheres, judeus, homossexuais, indígenas ou outro grupo étnico ou nacional — instantaneamente fornece a esse grupo os mesmíssimos métodos. Ao excluirmos alguém de nós, excluímo-nos a nós mesmos dessa pessoa. Quando dizemos “tu não és nós”, estamos também a dizer “nós não somos tu”.

Pode afirmar-se o mesmo sobre os livros que lemos. O ato de ler oferece-nos uma espécie particular de conhecimento que pode dar origem a uma transformação do mundo à nossa volta e de nós mesmos, que pode misteriosamente causar uma mudança epistemológica profunda; senão é uma ação em si mesma, uma fita de Möbius da experiência, afagando para sempre a sua única face. Shelley acreditava que a poesia ditou as leis por meio das quais compreendemos o mundo. Tristan Tzara acreditava que a única função da poesia era distrair-nos do mundo. Shelley tinha razão: nós, leitores, podemos fazer sentido do mundo através daqueles rabiscos. Tzara tinha razão: um poema não é mais do que rabiscos numa página.

A intolerância, sendo incapaz de perceber a riqueza individual e movendo-se apenas dentro de estereótipos, é uma forma de estupidez

Eu próprio (perdoem-me o excurso pessoal) sempre tomei a literatura, a sua conversão por meio do ato da leitura, como um processo de expansão no qual, à medida que vou lendo por entre as palavras as múltiplas camadas de outras leituras, o texto se transforma num palimpsesto. Mesmo que isto não exerça qualquer efeito imediato visível na sociedade, continuo a acreditar na eficácia dos rabiscos, porque os rabiscos conferem ao leitor poder para agir de modo diferente — por exemplo, para ler vingança onde alguém escreveu “vigorosa busca de justiça”. A literatura reconfigura-se a si mesma através da sua própria matéria, não pela rejeição mas pela releitura, e creio que a nossa função é continuar a propor novas perspetivas, de modo que as presenças e as ausências de que agora nos ressentimos possam ser vistas com mais clareza — e, por fim, para lhes concedermos o seu lugar próprio e comum.

Será que existem limites para este processo de redefinição, para o uso renovado que podemos fazer dos rabiscos? Recentemente, em entrevista ao “Público”, Pedro Mexia declarou: “Uma pessoa que leia a ficção da Flannery O’Connor e que abstraia dali uma mensagem racista é maluca da cabeça.” Talvez seja útil um exemplo clássico. O “Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, foi lido por Chinua Achebe (que não era maluco da cabeça) como um texto racista, apesar dos seus méritos literários, de tal maneira que Achebe se afirmou horrorizado pelo facto de a obra ser considerada um “clássico da literatura inglesa”. Todos os elementos que Achebe reconhece como racistas estão presentes, seguramente, no romance de Conrad. Por exemplo: Marlow, o narrador, descreve um grupo de africanos como “uma massa de corpos nus, cor de bronze, que respiram, vibrantes. À frente, três homens revestidos de terra vermelho-viva, da cabeça aos pés. Olhavam para o rio, batiam com os pés, abanavam as cabeças chifrudas, baloiçavam os corpos escarlate; agitavam na direção do feroz demónio do rio uma braçada de penas pretas, uma pele sarnenta com a cauda pendurada” — qualquer coisa semelhante a uma cabaça ressequida; a espaços, entoavam juntos uns cânticos impressionantes que em nada se assemelhavam aos sons da linguagem humana; e os seus murmúrios profundos, subitamente interrompidos, pareciam-se com as reações de uma litania satânica.

Compare-se com outro exemplo, retirado de um texto menos clássico:

“Mark Brendon era um homem à antiga e de todo se sentia atraído por mulheres nascidas da guerra. Reconhecia-lhes excelentes qualidades e muitas vezes um espírito distinto. Mas o seu ideal era de um género diferente e anterior — o género da sua própria mãe, que, depois de enviuvar, cuidou da casa do filho até morrer. A mãe era o seu ideal feminino — recatada, compreensiva, confiável — tomando sempre como seus os interesses do filho, concentrando-se mais na vida dele do que na dela, colocando no centro da sua existência os progressos e triunfos do filho. O que Mark desejava, na verdade, era uma mulher que se contentasse com a ideia de se fundir nele e que não procurasse sobrepor a sua personalidade à dele nem forjar um espaço de independência. Tinha capacidade de perceber que o lugar de uma mãe deve ser amplamente diferente do lugar de uma esposa, por mais perfeita que seja a devoção desta. Conhecia sobejamente homens casados para duvidar de que encontraria a mulher que procurava no mundo do pós-guerra. E contudo alimentava e permitia-se ter a esperança de que ainda existissem mulheres à antiga, começando a pensar onde poderia encontrar uma comparsa assim.”


Este texto é de Eden Phillpotts e surge em “The Red Redmaynes”, um dos mais conhecidos romances policiais ingleses da Idade de Ouro, considerado um clássico por Borges e publicado em 1922.


Enquanto leitor, posso fazer escolhas infinitas. Os elementos do texto — dependendo do tom da minha leitura, do meu sentido de humor, experiência, conhecimento do contexto e mais ainda — podem ser transformados de maneiras muito diferentes, por meio daquilo a que a semióloga italiana Giovanna Franci chamou “L’ansia dell’interpretazione”, o desejo ansioso de interpretar. Umberto Eco, em “Os Limites da Interpretação”, sugeriu que a interpretação ‘aberta’ — que designou como “o cancro da interpretação descontrolada” — é limitada pelo senso comum do leitor, e que há uma reação ao texto básica e comum, uma reação que permite um módico de comunicação.

Os estereótipos são sempre alimentados pela ignorância. E a ignorância, como definiu Montesquieu, é a mãe da tradição

Tomemos o caso de Conrad: é evidentemente possível a leitura ‘racista’ de “Coração das Trevas”. Todavia, não me parece que seja uma leitura útil. No coração das trevas não está essencialmente África, ou a visão que o homem branco tem de África, ou os “negros selvagens” descritos na ofensiva passagem acima. No coração das trevas está Kurtz. “A alma dele estava louca”, diz Marlow. “Sozinha na selva, olhou para dentro de si mesma e, céus!, digo-vos, tinha enlouquecido. Por causa dos meus pecados, suponho, tive de passar pela provação de eu próprio a ver por dentro. Eloquência alguma poderia ser tão devastadora para a crença na humanidade como o seu assomo final de honestidade.” A questão é que Kurtz e Marlow e todos os seres humanos têm de passar pela provação de olhar para dentro de si mesmos. E porque vivemos no mundo em que vivemos, não faremos tal coisa imbuídos de nobres pensamentos acerca da igualdade entre os homens, do respeito mútuo ou do amor que sentimos uns pelos outros. Temos de o fazer nesta fossa que construímos, por entre gritos de assassínio e vingança. Seria arrogante da minha parte negar a experiência de Achebe como leitor. As passagens racistas estão no texto, pertencem ao mundo de Kurtz e ao mundo de Marlow e definem-nos, assim com definem muitos dos admiradores de Conrad — vocês e eu. Mas saber se isto reflete ou não o ponto de vista de Conrad é uma discussão que apenas tem cabimento num lugar privado. No texto, a questão não é relevante, porque Conrad (quem quer que ele fosse) não faz parte do discurso de “Coração das Trevas”. Aqueles “negros selvagens” constituem ainda a imagem percebida pela maioria dos nossos vizinhos, por tribunais de júri brancos pelo mundo fora, por agentes da polícia da América do Norte, por lobistas anti-imigração na Austrália, por cidadãos honestos da província em França, pelo homicida de Bruno Candé. “Compreendes isto?”, grita Kurtz a Marlow no final. Kurtz responde: “Não compreendo?” E depois morre, provavelmente acreditando que de facto compreende. Marlow, que será fiel a Kurtz até ao fim “e mais além”, provavelmente também acredita. Também ele, algures fora do romance, vai morrer a acreditar nessa grande mentira do imperialismo que diz que o carrasco é, no fim de contas, a vítima. “Coração das Trevas” é um grande romance — apesar do que Achebe viu — porque não maquilha este horror: não o horror que Kurtz testemunhou, mas o horror do mundo inteiro, levado a cabo por toda a humanidade, incluindo a Europa e África. “Coração das Trevas” parece-me uma notável denúncia do racismo, no sentido em que não existe esperança dentro do sistema tal qual ele existe. E é irrelevante se Conrad acreditava ou não nisto. Uma grande obra de arte supera sempre o seu criador. “Há esperança, mas não para nós”, disse Kafka. Esta poderia ser a epígrafe de “Coração das Trevas”. 

A citação de “The Red Redmaynes” levanta questões diferentes. Desde logo, como terão reagido os primeiros leitores? Possivelmente, sem surpresa e sem humor. Embora uns poucos possam ter sentido de modo diferente, é extraordinário pensarmos que a maioria dos leitores da época terão ficado indiferentes a esta passagem. Depois, que significado tem este excerto para os leitores atuais? Além de justificar a fúria de se ser reduzido a ‘comparsa’, não poderia ser um ponto de partida para explorar as grandes premissas literárias da época? No ano de 1922 foi igualmente publicado “Ulisses”, de James Joyce. Quem é Molly Bloom por comparação com o eterno feminino de Phillpotts? Deixo a pergunta no ar... Quanto ao modo como leio Conrad e Phillpotts, sou obrigado a concordar com Tzara. Leio estes rabiscos, e no mundo de pedra e cal lá fora nada mudou. A injustiça continua a ser a injustiça, como nos dizem os jornais diários. 

No entanto... 

Se é verdade que um texto permite uma infinidade de leituras, é notório que os grupos no poder, definidos por oposição aos grupos por estes explorados, determinam em grande medida a leitura comummente aceite. Pelo menos nos últimos três milénios do génio, a norma tem sido masculino sobre feminino, branco sobre negro, heterossexual sobre homossexual. Ultimamente, tem-se sugerido que a culpa é dos próprios textos. Que a criação de textos por outras mãos e noutras vozes vai mudar o enfoque. Que certas vozes, mesmo as que se têm manifestado sobre assuntos que dizem diretamente respeito aos grupos oprimidos, deveriam ficar em silêncio voluntário por uns tempos, dando espaço àqueles a quem, entre os oprimidos, foi negado o lugar.

A escritora americana Alice Walker escreveu o seguinte: “O que pode o homem branco dizer à mulher negra?/ Somente alguma coisa que a mulher negra consiga escutar. [...]/ Vou remover-me enquanto obstáculo no caminho que os teus filhos,/ contra todas as probabilidades,/ vêm trilhando rumo à luz. Não irei assassiná-los/ por acalentarem sonhos/ e por oferecerem novas perspetivas acerca de como viver. Deixarei de tentar/ guiar os teus filhos,/ porque agora/ vejo que nunca soube para onde me encaminhava./ Acedo a sentar-me em silêncio durante/ um século ou dois para refletir nisto./ É isto que o homem branco pode dizer à mulher negra./ Estamos a escutar.” 

Ao excluirmos alguém de nós, excluímo-nos a nós mesmos dessa pessoa. Quando dizemos “tu não és nós”, estamos também a dizer “nós não somos tu” 

Como posso debater a lógica poética do texto de Walker? Não restam dúvidas de que devem e têm de ser escutadas cada vez mais vozes oprimidas. Não restam dúvidas de que é necessário que venham à superfície mais Alice Walkers, mais James Baldwins, mais Mudrooroos. Mas pouco irá mudar, a não ser que surja uma nova geração de leitores que tome nas suas mãos esses textos e que leia neles “novas perspetivas acerca de como viver”. Não é nos escritores que devemos concentrar-nos, mas sim nos leitores, que farão uso do texto e que farão com que algo aconteça. Enquanto não ocorrer esta educação do leitor, não haverá número suficiente de novas vozes para transformar o que quer que seja, porque elas apenas terão eco no seio de uma multidão surda. Se estes leitores aprenderem a descobrir, a interpretar, a traduzir, a situar os textos em diferentes circunstâncias, a transformá-los através das múltiplas camadas da leitura, se nós, leitores, nos treinarmos para fazer isto, então não pediremos que voz alguma seja silenciada, porque seremos capazes de fazer escolhas. Uma voz silenciada, voluntariamente ou não, nunca desaparece. A sua ausência torna-se gigantesca, demasiado gigantesca para ser ignorada, ainda que leve décadas ou séculos a vir à superfície, como aconteceu com as vozes dos escravos, das mulheres e dos homossexuais. Certamente não desejamos uma nova ausência, um novo vazio que dure cem ou mil anos, mas sim uma época de reparação, em que essas vozes surjam e partilhem a audibilidade usurpada durante tanto tempo por quem ocupa o poder. Tenho ainda a convicção de que a esperança está nos indivíduos e de que as soluções não estão na multidão. Um dos maiores triunfos de qualquer opressor é quando converte o oprimido aos seus métodos, reescrevendo a história ou apagando factos. As peças de Shakespeare “Otelo” (apelidada racista), “O Mercador de Veneza” (antissemita) e “O Amansar da Fera” (misógina) podem ser incendiadas nas universidades, tal como se podem vandalizar estátuas de figuras históricas controversas — nos Estados Unidos, os militares do Exército da Confederação; em Praga e Bengala, Winston Churchill; em Lisboa, o padre António Vieira. Mas queimar livros e derrubar estátuas não fará desaparecer os factos históricos que levaram a que tais livros fossem escritos e tais estátuas erigidas. 

Para ir em busca da verdade, o leitor não precisa de comungar dos métodos do escritor nem sequer dos métodos de outro leitor. Um texto permite mais liberdade do que habitualmente julgamos possível — é por isso que os governos nunca se preocupam de facto com a literacia, e é por isso que há escritores (e raramente mergulhadores de águas profundas ou corretores da bolsa) que são presos, torturados e assassinados por motivos políticos. A razão é a nossa única esperança.

A história do génio na garrafa tem um reverso.

No diálogo platónico “Górgias”, Sócrates propõe o seguinte método para estabelecer uma relação intelectual com o retórico de cujas convicções não partilha: “Continuarás a colocar e a responder a perguntas, Górgias, como estamos a fazer agora? Vais cumprir a promessa de responder sucintamente às questões que te forem colocadas?” Sócrates propõe ao seu adversário uma estratégia de diálogo.

Como bem sabemos, a sugestão razoável de Sócrates não se revelou infalível. Pelo contrário, conduziu a uma condenação injusta e a uma sentença de morte. Mas o desenlace trágico não invalida a verdade essencial do método proposto. Se há algo capaz de nos salvar da nossa própria insanidade, é a sanidade do mundo. O mote inscrito no brasão de armas do Chile é uma instrução clara para o suicídio coletivo: “Por la razón o por la fuerza”. Esta dicotomia, como fica provado no desenlace da história do génio, não tem validade. Se a causa, qualquer causa, mesmo a mais justa, for conduzida pela violência e pela raiva vingativa, sejam quais forem os motivos ou a indesculpável origem, o seu triunfo será sempre um triunfo da loucura. E esta, parece-me, é uma outra leitura possível da história do génio. 

[1] Título da edição brasileira de “The Fire Next Time”, livro que não está editado em Portugal (N.T.)

Tradução Madalena Alfaia
Uma versão deste artigo foi publicada originalmente no “La Nación”.

E-Revista Expresso, Semanário #2495, 22 de agosto 2020 


*Alberto Manguel é escritor, ensaísta e bibliófilo canadiano nascido na Argentina, professor nas Universidades de Columbia e Princeton



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