Morreu Eduardo Lourenço, gigante do pensamento português
O ensaísta, professor e filósofo morreu hoje em Lisboa, aos 97 anos.
O ensaísta Eduardo Lourenço, de 97 anos, morreu esta terça-feira em Lisboa, confirmou à agência Lusa fonte da Presidência da República.
Professor, filósofo, escritor, crítico literário, ensaísta, interventor cívico, várias vezes galardoado e distinguido, Eduardo Lourenço foi um dos pensadores mais proeminentes da cultura portuguesa, escrevendo várias obras sobre a sociedade e identidade portuguesa. O Labirinto da Saudade (“discurso crítico sobre as imagens que de nós próprios temos forjado”, nas palavras do autor), Fernando, Rei da Nossa Baviera, Os Militares e o Poder são algumas das suas principais obras.
Eduardo Lourenço Faria nasceu em 23 de Maio de 1923, em S. Pedro do Rio Seco, no concelho de Almeida, na Beira Alta. O mais velho de sete irmãos, e filho de um militar do exército, frequentou a escola primária da aldeia onde nasceu e matriculou-se, posteriormente, no Colégio Militar, em Lisboa, onde concluiu o curso em 1940. “Vindo de uma pequena aldeia e de uma família conservadora, encontrou em Coimbra um ambiente mais aberto e propício a uma reflexão cultural que sempre haveria de prosseguir”, refere o Dicionário Cronológico de Autores Portugueses”, editado em 1998. Frequentou o curso de Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde foi depois professor assistente. Emigrou para França em 1949, ano em que é publicado o seu livro de estreia, Heterodoxia I. “Um dos mais nobres e perturbantes discursos ensaísticos de toda a nossa história literária”, classificou o professor e ensaísta Eugénio Lisboa.
Foi leitor de Língua e Cultura Portuguesa nas Universidades de Hamburgo e Heidelberg, na Alemanha, e Montpellier, na França, depois professor de filosofia na Universidade Federal da Baía, no Brasil. Também foi leitor a cargo do Governo francês nas Universidades de Grenoble e de Nice.
“Portugal não é uma ilha, mas vive como se fosse”
“Não posso deixar de lamentar profundamente a morte de Eduardo Lourenço, uma das mentes mais brilhantes deste país. Eduardo Lourenço foi um pensador, arguto e sensível como poucos e incansável combatente do caos dos dias”, reagiu a ministra da Cultura, Graça Fonseca, no Twitter. “Pensador de espírito livre e olhar profundo, aberto e sempre diferente sobre as questões, o professor Eduardo Lourenço deu, ao longo dos anos, um importante contributo na forma de se pensar o destino português”, referiu Isabel Mota, presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, da qual o ensaísta foi colaborador de longa data e administrador não executivo entre 2002 e 2012.
Nos seus livros e intervenções públicas abordou sempre o país. “Portugal não é uma ilha, mas vive como se fosse. Talvez por uma determinação de quase autodefesa. O que me admira mais não é a preocupação constante que temos em saber qual é a figura que fazemos no mundo enquanto portugueses. Todos os países terão à sua maneira essa preocupação. É o excesso dessa paixão. É preciso que não estejamos sempre a viver um Ronaldo coletivo, um ‘nós somos o melhor do mundo'”, dizia na última entrevista ao PÚBLICO, em 2017.
Na juventude escreveu poesia e narrativa, géneros que abandonou para uma literatura mais ensaística. “Em relação à ficção – com a minha falta de sentido do concreto – muito cedo pensei que não teria capacidade de me tornar naquilo que eu mais queria ser: um romancista, um ficcionista”, disse à revista Ler, em 2008.
O mundo dos livros
Refletia e dialogava, de certa forma, com as obras de Camões e Pessoa, mas estava atento à nova geração de escritores, elogiando, por exemplo, Gonçalo M. Tavares ("parece ter um universo muito próprio. Uma escrita fria e brilhante, ao mesmo tempo. Paradoxal. Gosto dele”, dizia à Ler).
Apaixonado pela literatura, referia-se aos livros como “filhos” e dizia que “estar-se sem livros é já ter morrido”. Em 2008, à Ler, dizia que “dificilmente” conseguiria imaginar o mundo sem livros em papel. “Bom, de qualquer modo os livros ainda estarão aí. Estarão aí, mas como museu. Em vez de termos uma biblioteca, que é uma floresta viva da memória humana, os livros estarão lá como espectros. Mas, enfim, podem ser ressuscitados pela leitura de cada um. Isso modifica a nossa relação com o mundo. Porque o relacionamento com os livros – que vem de todos os livros que a gente lê quando é jovem – torna-os bocados de nós próprios. São as tábuas privadas das nossas leis. As escritas e as não escritas. Faltará qualquer coisa quando a nossa relação com eles for puramente eletrónica.”
E completava: “No livro a gente pode voltar atrás, andar para frente. Também podemos fazer isso com a imagem, provavelmente, mas há sobretudo esse tempo que é transportado fisicamente pelo livro. Esse pó que fica nos livros. O pó do tempo. Nos novos instrumentos não haverá pó. É só o que lhes falta. Esse pó quer dizer o tempo, quer dizer a própria essência da nossa vida.”
Em 2018, foi protagonista e narrador da sua própria história, num filme de Miguel Gonçalves Mendes, que teve antestreia a 23 de Maio, dia em que Eduardo Lourenço completou 95 anos. Intitulado O Labirinto da Saudade, o filme adapta a obra homónima de Eduardo Lourenço e traça uma viagem através da cabeça do pensador português, constituindo-se como uma “homenagem em vida” do realizador ao ensaísta.
Nesse mesmo ano, a propósito da polémica em torno de um possível “Museu das Descobertas” em Lisboa, devido sobretudo ao nome e ao programa, que foram classificados como “neocoloniais”, o ensaísta deixou bem clara a sua oposição ao que chamou de “crucificação” do país pelo seu passado colonizador, quando não houve maldade na génese e o mal feito já não podia ser reparado. “Acho extraordinário, num momento em que a Europa é quase toda ela democrática, que, de facto, um país com menos problemas graves e de difícil resolução no mundo seja objeto desta espécie de penitência pública”, lamentou.
Exatamente um ano mais tarde, Eduardo Lourenço cumpriu uma das suas derradeiras aparições públicas, numa homenagem em que o primeiro-ministro, António Costa, sublinhou a “sabedoria ilimitada” do ensaísta, e defendeu a celebração da data, “como um dia de festa da cultura portuguesa”. Marcelo Rebelo de Sousa celebrou igualmente os 96 anos de Eduardo Lourenço, com uma mensagem na página da Presidência, e a União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa instalou uma estátua sua, em bronze, da autoria de Leonel Moura, nos jardins da sua sede em Lisboa.
Nesse dia, o autor de Fernando, Rei da Nossa Baviera falou sobre o papel de Portugal na história, associando-o a uma “vontade de não abdicar do sonho”, uma “vontade um pouco louca”. “Portugal viajou uma viagem por conta própria, um sonho, e esse sonho não tem fim e não terá fim”, disse Eduardo Lourenço. “Os portugueses atreveram-se tanto quanto podiam, talvez, e esse atrevimento é aquele que ficará realmente na história de nós”.
Quando fez 95 anos, Eduardo Lourenço confessou, em entrevista à Lusa, que era “difícil assumir” o aniversário, porque sabia que era “o princípio do fim”, mas que não o encarava “como uma coisa trágica”, porque “todos estamos confrontados com essa exigência”. “A tragédia já é, em si, nós não podermos escapar àquilo que nos espera, seria uma injustiça para todas as outras pessoas, que eram os nossos e que já morreram, que nós não fossemos capazes de suportar aquilo que eles suportaram quando chegou o fim deles”, afirmou. “É ir para a morte como se todos aqueles que nos conheceram e nós amámos estivessem connosco”.
Lusa e Pedro Rios, in Público | 1 de dezembro de 2020
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público
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