1.
Escadas como prisão.
Sem elevador, a altitude — mesmo que na cidade — é feita de betão e distância; exige atletas, não senhoritas e senhoritos de bengala de locomoção lentíssima.
Os velhos; colocados lá em cima, nos andares mais baratos. Anos antes, a falta de elevador era uma proposta para as pernas, difícil e incómoda, mas aceitável. No entanto, a idade faz isto, e há muito: enfraquece músculos, cansa os que antes não se cansavam.
Agora, tens 80 anos e estás preso sem crime nem culpa alguma, sem participação da lei ou da polícia. Ou seja: tens muitas escadas para descer e, no regresso, cinco vezes mais escadas para subir — que a subida, já se sabe, multiplica por cinco a distância — uma multiplicação de esforço cardíaco e mental;
(é evidente que devíamos ter pelo menos duas réguas, a que mede as subidas e a que mede as descidas; ter apenas uma e usar os mesmos critérios para falar de distâncias não apenas diferentes, mas inimigas, é pura falcatrua; descer e subir são verbos adversários.)
Faltam, pois, instrumentos para a ciência (duas réguas diferentes, pelo menos) e ainda elevador para os velhos das cidades europeias que vivem em edifícios de quatro andares sem elevador nenhum.
2.
Imagino uma cidade onde todos os velhos vivem em prédios de quatro andares sem elevador. Velhos que não cometeram crimes estão presos nos pisos altos, quase ao nível das nuvens. Sem elevador, não conseguem descer. As escadas tornaram-se uma pena de prisão em forma de degrau. A pena é tanto mais alta quanto mais numerosos são os degraus. O segundo andar sem elevador remete para um castigo ligeiramente menor, e assim sucessivamente.
Mas o Estado não quer que os velhos morram porque muitos deles são avós e ser avô é colocar um excessivo peso afectivo no coração dos outros. Recebem, por isso, na minha imaginação, comida por cestos e sistemas de cordas que levam até lá acima o essencial para o organismo sobreviver. E de lá de cima trazem o lixo — aquilo que, se ficar em casa, sufoca os vivos aos poucos, maltrata narinas e respiração e, por fim, contamina e mata. Comida em direcção ao céu, lixo em direcção à terra. As nuvens não comem, os mais velhos sim.
3.
Uma casa é muitas coisas — sono, afectividade e por vezes desespero — mas na sua base está um simples sistema de troca: entra comida, sai porcaria.
4.
Ou em vez de sistemas de roldanas e cestos em dois sentidos — o que cheira bem sobe e é comestível; o que sobrou do dia e fede, desce — em vez de sistemas manuais e antigos, imaginar, então, a partir da realidade, mas no mundo da ficção, helicópteros que vão aos quartos andares sem elevador, das cidades, levar comida aos bem velhos que mal podem andar.
Helicópteros que salvam, mas todos os dias e no mesmo sítio à mesma hora. Helicópteros que salvam como quem cumpre um horário, salvam ao fim da tarde, pelas 18 horas, trazendo comida e medicamentos e tudo o que um corpo exige para continuar orgânico e humano. Funcionários públicos da salvação diária em helicópteros como se em dia de tragédia, de terramoto ou calamidade súbita, mas afinal não: amanhã e depois, e depois ainda, voltam porque a calamidade e o tremor da terra são diários e não se vêem ou sentem no solo da cidade, mas sim lá em cima, estranhamente. Os velhos estão no quarto andar sem elevador e de lá, das janelas, abanam a mão e diariamente pedem ajuda — como um náufrago diário em vias de afogamento.
Quem, de entre eles, não tiver família — ou empatia em volta — morrerá a meio das escadas. A subir ou a descer, pouco importa, quando se morre a fita métrica é só uma.
Gonçalo M. Tavares. Os cadernos e os dias - História fragmentada do mundo in Revista Expresso Semanário #2540, de 2 de julho de 2021
Gonçalo M. Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
Sem comentários:
Enviar um comentário