1.
“Pela primeira vez, um implante cerebral transformou pensamentos em discurso”, diz a notícia.
Uma máquina que é uma tradutora entre duas línguas: a língua do pensamento e a língua do discurso.
Mas, de imediato, pensar no bom e no mau tradutor e ainda no tradutor que intencionalmente deturpa a mensagem. Escolhe bem o tradutor, escolhe bem a máquina — eis um conselho.
2.
No limite, podemos pensar numa nova espécie humana que dispensasse o discurso oral e comunicasse por pensamentos.
Desta experiência em particular, diz-se: o indivíduo pensava em verbalizar cerca de 50 palavras e o computador transformava-as em som.
“Ensaios clínicos com um voluntário paralisado há 15 anos, na sequência de um acidente vascular cerebral, são promissores, defendem os cientistas, que apontam inúmeros caminhos possíveis para melhorias no dispositivo — possíveis através do treino do computador e da antecipação do discurso da pessoa.”
Com treino da máquina essas 50 palavras passarão para 500 e depois para 5000.
3.
É necessário colocar um microfone junto ao cérebro, e as simples cordas vocais são isso — e muito mais, claro.
Alguém que pensa, mas não tem cordas vocais nem outros meios de expressão — por exemplo, não consegue escrever, etc. —, eis a mais extrema definição de prisão. O pensamento preso na caixa craniana — está ali, e está vivo, mexe-se, relaciona e inventa, mas não consegue sair para o exterior. Está mudo o pensamento, mas não quieto. Uma prisão inventada pelo pior dos diabos.
4.
Imaginar prisões cerebrais em vez de concretos isolamentos do corpo em celas feitas de cimento e distância.
Imagino a pena de um Estado totalitário e perverso: desligar, no acusado, o pensamento da fala e da escrita.
O pensamento estará durante anos apenas na tua cabeça. E não conseguirás tirá-lo cá para fora.
Nem escrita, nem desenho, nem fala; cá fora nada.
5.
Sobre os animais.
O que os estudiosos dizem sobre o chimpanzé: pensa, mas as cordas vocais humanas e o sistema da fala estão ausentes.
Percebemos que pensa pelo que faz com as mãos.
Quem faz muito com as mãos pensa muito com a cabeça.
6.
Há um dito popular, absurdo e divertido, mas talvez bem mais sensato do que parece:
Macaco só não fala porque tem preguiça de remar.
7.
Não entender a linguagem traz também isto: ser incapaz de obedecer. Se o macaco percebesse claramente a fala humana, há muito tinha sido adestrado para remar e para outros trabalhos pesados.
A esperteza do macaco é esta.
Macaco só não fala porque tem preguiça de remar.
8.
— Não percebo.A frase “Sim, compreendo o que dizes” é uma frase usada desde os inícios da história humana, pelo poder violento, como a frase que inaugura os trabalhos forçados.
Os loucos há muito perceberam instintivamente essa relação directa entre não compreender e liberdade.
Um dos caminhos da liberdade é este: não percebo nada do que dizes.
— Faz isto.
— Vou espancar-te.
— Não percebo.
— Estou a espancar-te.
— Não percebo.
No limite, eis a grande defesa: imaginar um corpo que não compreende a própria dor, não a sente e não a decifra.
9.
O que tens para te defenderes do mundo violento? Tenho a minha falta de compreensão, a minha estupefacção.
Uma ordem verbal inútil é, em termos de linguagem, uma frase extraterrestre.
Diante de uma ordem rude fico estupefacto como diante de uma aparição ovni.
10.
Eis o louco que sai para o mundo hostil equipadíssimo com uma única frase:
peço desculpa, mas não percebo.
O louco só não entende porque tem preguiça de remar.
Gonçalo M. Tavares. Revista E, Semanário Expresso #2543, de 23 de julho de 2021
Gonçalo M. Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
Sem comentários:
Enviar um comentário