segunda-feira, 26 de julho de 2021

A arte de não compreender

 






1.

“Pela primeira vez, um implante cerebral transformou pensamentos em discurso”, diz a notícia.

Uma máquina que é uma tradutora entre duas línguas: a língua do pensamento e a língua do discurso.

Mas, de imediato, pensar no bom e no mau tradutor e ainda no tradutor que intencionalmente deturpa a mensagem. Escolhe bem o tradutor, escolhe bem a máquina — eis um conselho.

2.

No limite, podemos pensar numa nova espécie humana que dispensasse o discurso oral e comunicasse por pensamentos.

Desta experiência em particular, diz-se: o indivíduo pensava em verbalizar cerca de 50 palavras e o computador transformava-as em som.

“Ensaios clínicos com um voluntário paralisado há 15 anos, na sequência de um acidente vascular cerebral, são promissores, defendem os cientistas, que apontam inúmeros caminhos possíveis para melhorias no dispositivo — possíveis através do treino do computador e da antecipação do discurso da pessoa.”

Com treino da máquina essas 50 palavras passarão para 500 e depois para 5000.

3.

É necessário colocar um microfone junto ao cérebro, e as simples cordas vocais são isso — e muito mais, claro.

Alguém que pensa, mas não tem cordas vocais nem outros meios de expressão — por exemplo, não consegue escrever, etc. —, eis a mais extrema definição de prisão. O pensamento preso na caixa craniana — está ali, e está vivo, mexe-se, relaciona e inventa, mas não consegue sair para o exterior. Está mudo o pensamento, mas não quieto. Uma prisão inventada pelo pior dos diabos.

4.

Imaginar prisões cerebrais em vez de concretos isolamentos do corpo em celas feitas de cimento e distância.

Imagino a pena de um Estado totalitário e perverso: desligar, no acusado, o pensamento da fala e da escrita.

O pensamento estará durante anos apenas na tua cabeça. E não conseguirás tirá-lo cá para fora.

Nem escrita, nem desenho, nem fala; cá fora nada.


5.

Sobre os animais.

O que os estudiosos dizem sobre o chimpanzé: pensa, mas as cordas vocais humanas e o sistema da fala estão ausentes.

Percebemos que pensa pelo que faz com as mãos.

Quem faz muito com as mãos pensa muito com a cabeça.

6.

Há um dito popular, absurdo e divertido, mas talvez bem mais sensato do que parece:

Macaco só não fala porque tem preguiça de remar.

7.

Não entender a linguagem traz também isto: ser incapaz de obedecer. Se o macaco percebesse claramente a fala humana, há muito tinha sido adestrado para remar e para outros trabalhos pesados.

A esperteza do macaco é esta.

Macaco só não fala porque tem preguiça de remar.

8.

— Não percebo.A frase “Sim, compreendo o que dizes” é uma frase usada desde os inícios da história humana, pelo poder violento, como a frase que inaugura os trabalhos forçados.

Os loucos há muito perceberam instintivamente essa relação directa entre não compreender e liberdade.

Um dos caminhos da liberdade é este: não percebo nada do que dizes.

— Faz isto.

— Vou espancar-te.

— Não percebo.

— Estou a espancar-te.

— Não percebo.

No limite, eis a grande defesa: imaginar um corpo que não compreende a própria dor, não a sente e não a decifra.

9.

O que tens para te defenderes do mundo violento? Tenho a minha falta de compreensão, a minha estupefacção.

Uma ordem verbal inútil é, em termos de linguagem, uma frase extraterrestre.

Diante de uma ordem rude fico estupefacto como diante de uma aparição ovni.

10.

Eis o louco que sai para o mundo hostil equipadíssimo com uma única frase:

peço desculpa, mas não percebo.

O louco só não entende porque tem preguiça de remar.


Gonçalo M. Tavares. Revista E, Semanário Expresso #2543, de 23 de julho de 2021

Gonçalo M. Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


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