terça-feira, 6 de julho de 2021

Mãe, quero ser você











A mãe perguntou como se chamavam os amigos. O miúdo, primeiro calou-se e depois, a medo, disse:
“Têm todos o mesmo nome”


Não tenho quase nenhuma experiência em psiquiatria infantil. Limitei-me a fazer um estágio há muitos anos, no tempo em que tudo o que acontecia às crianças era culpa das mães. Os pais eram umas não-pessoas, que se passeavam lá por casa, sem terem nada a ver com os problemas psicológicos dos filhos. Bons tempos para os homens, que quase nunca eram “incomodados” pelos técnicos de saúde mental. Desde então muita coisa foi mudando, e a família nuclear já é vista como um todo, ainda que as mães continuem a ser, para alguns técnicos, as más da fita e, frequentemente culpabilizadas. Mas também aqui estaremos a caminho da igualdade.

Esta história surgiu no meio de uma terapia de casal, cujo pedido não tinha nada a ver com o que vos vou contar. E também não tem nada a ver com psicologia infantil, mas sim com sociologia de adultos. Um casal com alguns problemas de expressão de afetos. As queixas habituais de género. Que ele era pouco meigo, não conversava, não contava o seu dia à dia, que ela estava sempre a chateá-lo porque passava muito tempo com os amigos e não tinha paciência para as amigas dela. Nada de muito especial nem muito grave. Apenas a habitual falta de perceção masculina que os tempos mudaram e o casamento já não é para toda a vida, se não for ‘adubado’ com frequência.

Divertidos, com muito sentido de humor, contavam histórias deliciosas dos seus encontros e desencontros, daqueles casais de quem apetece ser-se amigo e por isso tenho de ter mais cuidado com a minha neutralidade e distância. Tinham dois filhos, uma rapariga com oito anos e um rapaz com cinco. A vida profissional estava a correr-lhes bem, tinham-se mudado há pouco tempo para uma vivenda, fora de Lisboa, numa zona tida como rica. Naturalmente, os miúdos adoraram e começaram a conhecer os vizinhos. A miúda mais introvertida demorou mais tempo a criar proximidade com as famílias próximas, mas o miúdo, completamente extrovertido, ao fim de pouco tempo já era muito popular na zona.

O jardim permitia grandes futeboladas, rapidamente os amigos começaram a aparecer e a fazerem vários Benfica-Sporting em mini-infantis... Não demorou muito tempo até a bola ir para a casa ao lado, num remate mais alto, que passava por cima da sebe. Simples, trepavam ao muro e iam buscar o esférico. Assim começaram a conhecer os miúdos do lado, com idades semelhantes. Daqui até aos convites mútuos para lanchar e jogarem PlayStation foi um ápice.

Os pais iam acompanhando estas aventuras satisfeitos porque finalmente não viviam metidos num andar e as crianças tinham muito espaço e não passavam a vida a ver televisão. Foi num jantar que a mãe perguntou como se chamavam os amigos do lado. O miúdo, primeiro calou-se e depois, a medo, disse:

— Têm todos o mesmo nome.

Não pode ser, disse a mãe. Os filhos têm sempre nomes diferentes.

— É verdade, a mãe deles chama-os todos por você. Você isto, você aquilo, você venha cá, agora você pare de brincar e vá tomar banho, não seja porco...

Os pais olharam um para o outro, sem saberem o que dizer. Não era fácil explicar a uma criança de cinco anos as idiossincrasias de algumas famílias. Mas o mais difícil estava para vir e deixou-os sem resposta.

— Posso mudar de nome? Também quero ser você, como os meus amigos.

José Gameiro. Diário de um psiquiatra in Expresso Semanário#2539, de 25 de junho de 2021

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