Editorial Presença, 2021
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O romance, que há um ano venceu o Prémio Goncourt e vendeu um milhão de exemplares em França — por cá vai na quarta edição em pouco mais de um mês —, é feito de perguntas destas. Feito de personagens que formulam perguntas destas. Feito da ausência de respostas a que este tipo de perguntas conduz. E feito da mestria de um escritor, Hervé Le Tellier, que, do início ao fim das escassas 276 páginas, coloca sobre a mesa a mais alta, última e primeira, questão filosófica, sociológica, técnica, matemática, lógica, antropológica, psicológica e física, a única questão que nos ocupa desde os tempos mais antigos e aquela cuja abordagem deu origem a milhares de páginas e de teorias: a questão sobre o que somos.
Dividido em três partes, cada uma delas contém os capítulos que, a pouco e pouco, nos fazem penetrar na história. E esta é aparentemente simples: um avião aterra com duas centenas de pessoas a bordo e, descobre-se, é a duplicação exata de um outro voo que fizera a mesma travessia 106 dias antes. A complexidade da trama deriva da identificação das personagens e do que cada uma faz com a circunstância de se ver confrontada com o seu duplo. Os sentimentos variam, do ódio profundo ao ciúme, do assassínio à solidariedade e ao sacrifício. Há um homem velho que tentará ajudar o seu segundo ‘eu’ a não cometer os mesmos erros na relação com uma mulher. Um assassino profissional que vê no seu duplo a pior das ameaças. A mãe que se recusa a partilhar tal estatuto perante o filho. A mulher que prefere “desaparecer” a destruir um casal. O homem que morre de cancro e tem uma segunda chance. O cantor que sente o duplo como um irmão. O escritor que não chega a conhecer o seu duplo porque este se suicida depois de ter escrito um livro intitulado “A Anomalia”.
Além de escritor e jornalista, Hervé Le Tellier tem formação em matemática e em linguística. Isso permite-lhe estruturar o romance de modo a que não resvale para o terreno da distopia: não há, aqui, um futuro a ser retratado, mas um presente a decorrer hoje, em pleno 2021. O autor recorre a diversas hipóteses científicas para justificar a ideia da duplicação e acaba por escolher a teoria da simulação de Nick Bostrom, que serve de alicerce ao livro. Resolvido o assunto da verosimilhança (o ser humano acede à verdade sobre a sua situação graças a uma ‘anomalia’, isto é, a duplicação dos aviões), Le Tellier parte para uma digressão sobre o que aconteceria se, de repente, descobríssemos que tudo aquilo em que acreditamos e no qual a nossa vida assenta é virtual, sendo o real por nós desconhecido ou irreconhecível. “De que serve saber?”, pergunta alguém a dada altura, condensando a mensagem do romance: se não fôssemos o que somos, se o mundo fosse o interior penumbroso da Caverna de Platão, isso faria alguma diferença?
E, se resulta impossível não pensar no “sonhador sonhado” de um dos mais célebres contos de Jorge Luis Borges, ou no Calvino de “Se numa Noite de Inverno um Viajante”, Le Tellier vai revelando as suas referências — Tolstoi, Coetzee, Adam C. Clarke, Gary, Perec, Carroll, Shakespeare, Nietzsche —, que farão sorrir alguns, embora isso seja o menos importante.
Luciana Leiderfarb. E - Revista Expresso, Semanário#2543, 23 de julho de 2021
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