Crónica de Afonso Reis Cabral
A lua cheia como a da noite do último 24 de Junho, em Lisboa, não cabe em linhas escritas. Depois das Docas, no passeio que leva a Belém, as pessoas paravam para contemplá-la, para sentirem o quente quente, para casais darem beijos e ciclistas sentirem o refresco da pedalagem. Ia fundo, isso de a vida por vezes ser muito vivível.
Eu também. Passeava a ver tudo isto, a atentar nos insectos perseguidos pelos morcegos e a secar as mãos de algum suor, quando me deparei com um grupo de vinte, trinta pessoas. A maioria novas, mais novas do que eu, algumas mais velhas. Estavam vestidas de passeio de domingo. E paradas de pé, muito juntas, frente ao rio.
Fiquei curioso. Havia quem passasse comendo indignações baixinhas, muito portuguesas: "Tanta gente sem máscara, porra, não aprendem".
Eu a vê-los. No meio do grupo, entre as pernas, surgiu a luz de uma chama. Da mesma cor da lua de sangue que acabara de subir. As pernas afastaram-se; era um balão de São João.
Mas as pessoas atrapalhavam-se, a mecha não aquecia o suficiente, mãos irrequietas apalpavam o balão, abanavam-no, e ele nada - preso à terra. Olhavam uns para os outros em busca de auxílio. A minha infância veio à tona, e saiu-me alto: "Não é assim! Isso ainda arde, tenham cuidado!" Agora os olhos do auxílio eram para mim.
Mais uns segundos e a chama descompunha o balão. "Desculpe", disse um homem mais velho, "nós não percebemos muito disto. Pode ajudar-nos? Este era de teste." Meti-me entre eles, ajudava sim, e ao grupo que zelava pelo balão juntou-se um desconhecido.
O homem que me pedira ajuda trouxe novo balão, o triplo do outro. Volteei-o no ar como em criança - meus pais, era assim junto da magnólia, ainda me lembro. Depois pedi que segurassem nas dobras com a ponta dos dedos. São precisas várias pessoas para um balão. Acendemos a mecha.
Quando o balão se encheu de labareda, nos começos de querer subir, reparei que nele estavam escritas dezenas de frases. "Estas mensagens o que são?", perguntei.
Eram dizeres de saudade, as melhores frases para a noite de Lisboa, linhas que cresciam com o calor, esticando-se à medida que o balão fazia por se levantar. Frases que os pais, os amigos e os familiares tinham escrito em homenagem a um rapaz que morrera um ano antes.
Sentia-se o calor no papel insuflado. O balão ansiava por fugir. "Está quase, basta largarmos", disse eu. O homem que me pedira ajuda, o homem que era pai do rapaz, pediu mais uns segundos.
Agora, agora.
Enquanto o balão subia, primeiro rumo a norte, à Ajuda, depois pela mão do vento rumo a sul sobrevoando o Tejo, as pessoas abraçavam-se, choravam, faziam silêncio. Eu, que era o forasteiro, afastei-me pelo dever de não perturbar o ritual sagrado. E o balão já estava longe de quem se abraçava, de quem chorava - de nós que o olhávamos.
Por fim, apagou-se e negro desapareceu no Tejo negro. Batemos palmas.
"Sabíamos, e hoje tivemos mais uma prova, que o nosso filho tinha amigos extraordinários", disse a mãe, logo perdida no ombro do marido.
E eu estava a pensar em como se chamaria o filho (parecia-me uma grande falta encontrar-me entre os seus amigos e não saber o nome), quando alguém me perguntou: "Você percebe disto, diga-me, porque é que o balão se apagou?"
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