sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Pão de Açúcar | Fragmentos





Autor : Afonso Reis Cabral
Título: Pão de Açúcar
Editor : Dom Quixote
Data de lançamento : 18.09.2018
ISBN: 9789722065993
Nº de Páginas: 264




"A ficção não consegue acompanhar a realidade, todos os livros ficam aquém." - Afonso Reis Cabral





SINOPSE


Em Fevereiro de 2006, os Bombeiros Sapadores do Porto resgataram do poço de um prédio abandonado um corpo com marcas de agressões e nu da cintura para baixo. A vítima, que estava doente e se refugiara naquela cave, fora espancada ao longo de vários dias por um grupo de adolescentes, alguns dos quais tinham apenas doze anos. Rafa encontrara o local numa das suas habituais investidas às «zonas sujas», e aquela espécie de barraca despertou-lhe imediatamente o interesse. Depois, dividido entre a atracção e a repulsa, perguntou-se se deveria guardar o segredo só para si ou partilhá-lo com os amigos. Mas que valor tem um tesouro que não pode ser mostrado? Romance vertiginoso sobre um caso verídico que abalou o País, fascinante incursão nas vidas de uma vítima e dos seus agressores, Pão de Açúcar é uma combinação magistral de factos e ficção, com personagens reais e imaginárias meticulosamente desenhadas, que vem confirmar o talento e a maturidade literária de Afonso Reis Cabral.




FRAGMENTOS DO ROMANCE 

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“Acho que era Janeiro, até porque a data final disto é 22 de Fevereiro às oito e meia da manhã e, apesar de agora parecerem meses, a verdade é que não se passaram sequer sete semanas até as coisas acabarem.”


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"Reconhecia nele, em dobro, a repulsa e o nojo que sentira ao encontra-la. Entretanto a minha aversão passara. Ter continuado a ajudá-la provava que afinal era mais homem do que rapaz, adulto em vez de criança, por oposição ao Nélson. E até por oposição ao Samuel, que conversava em paz com a Gi apenas por ainda não ter percebido que ela era um traveca igual aos que insultávamos em Santa Catarina.”


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"A Gi nem se atrevia a falar mas a força dos pontapés obrigou-a a sair para não lhe caírem em cima partes da barraca.
Depois de dizer «Não tenho para onde ir!», ignorou o grupo do Fábio e sorriu-nos, não sei se atrapalhada por nos ver envolvidos naquilo, se de alívio por esperar que a ajudássemos. A mim sorriu mais, como quem pergunta «Viu os post-its?»."


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 "De certa maneira, tínhamos voltado aos primeiros dias, juntos na cave sem mais ninguém. Faltava a bicicleta, mas era mais prudente mantê-la no vão das escadas. Acto contínuo, repreendi-me por não estar apenas concentrado em alimentá-la antes de sairmos da cave."

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"A massa soube-me bem. Agachei-me junto à Gi para lhe dar de comer com um garfo de plástico. Duas tentativas depois, frustrada por não abrir a boca em condições, disse-me «Desiste de mim, me deixa em paz. Eu não mereço».”




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“O Samuel recomeçou a chorar, desta vez sem vergonha ou controlo, à frente de todos. Eles riram-se muito e eu imitei-os. A Gi reagiu ao choro doce — oásis no Pão de Açúcar —, olhando para cima com dificuldade. Procurava a cara dele e tentava levantar-se em vão. Antes de o alcançar, o olhar passou por mim sem se deter.

Isso meteu-me tanta raiva que disse numa rajada «O Samuel conhece este traveco desde pequeno, eram muito amigos». Eu sei que devia ter ficado calado mas reconheço que senti alguma satisfação, como as pessoas que batem para ter prazer.”



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“Empurrámos juntos sem esforço e o corpo desapareceu.
Não descrevo o som do embate nas paredes irregulares do poço, nem como ela ficou suspensa num espigão antes de cair à água. Até aí escuro, o fundo parecia brilhar com a presença da nova habitante.
A água ainda borbulhava quando o Nélson disse «Meu, fiz a minha parte, vou mas é para as aulas». E eu agradeci, aliviado por ficar sozinho com a Gi antes de abandonar o Pão de Açúcar.”


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“Uma semana depois, o médico-legista concluía a autópsia. Escreveu o relatório com uma caligrafia nada notável, muito certa e bem alinhada, como se a sequência de letras fosse um código de barras. Fechou com uma frase semelhante a esta: os pulmões, para além de apresentarem os nódulos característicos da bactéria M. tuberculosis, denotam aspiração volumosa de água.
Ou seja, ainda que os rapazes se tenham convencido do contrário, Gisberta Salce Júnior estava viva quando a atiraram ao poço.”


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