terça-feira, 17 de maio de 2022

Rembrandt por Rembrandt

 

 

 

 

Autorretrato com Boina e Duas Correntes exemplifica um dos temas preferidos do pintor holandês – a representação de si próprio, vestindo a pele de personagens diversos.



A obra de Rembrandt (1606-1669), que ascende a mais de trezentas pinturas e cujo legado artístico permanece como um dos mais poderosos da arte ocidental, inclui cerca de quarenta autorretratos. Nesta categoria é possível identificar, desde o final da década de 1620 até ao ano da sua morte, numa produção muitas vezes intrigante, diversas subcategorias ou grupos de composições, nas quais o artista assume, deliberadamente, papéis distintos.

Rembrandt começou por se fazer representar, num primeiro momento, bastante fiel «à sua imagem», de forma deliberadamente convencional. Uma questão relevante para a compreensão dos autorretratos relaciona-se com o facto de o pintor, a partir de 1629, ter propositadamente manipulado a sua imagem num número significativo de autorretratos.

O recurso a adereços exóticos veio também a dar origem a uma categoria de figuração que oscilou entre o retrato à l’antique e o retrato «à oriental», nem sempre de fácil diferenciação. Entretanto, Rembrandt poucas vezes se apresentou de maneira formal, à moda da época, cabendo essa exceção a Autorretrato do Artista como Burguês (1632, The Burrell Collection, Glasgow).


Rembrandt van Rijn, ‘Self-Portrait’/ ‘Self-portrait of the Artist as a Burger’. Amsterdam, 1632. 
Oil on panel. The Burrell Collection, Glasgow. Photo: © Glasgow Museums



Particularmente reveladora para a compreensão dos autorretratos é a representação de Rembrandt com indumentária distintiva da sua profissão, tipologia de composição que nos conduz à representação do pintor como motivo de pintura. O Pintor no Ateliê (c. 1628, Museum of Fine Arts, Boston), provavelmente uma recriação bastante fidedigna da oficina de Rembrandt, transporta o criador para o espaço (mental) de criação.



Rembrandt van Rijn, «O Pintor no Ateliê», c. 1628. Óleo sobre madeira. 
Zoe Oliver Sherman Collection oferecido em memória de Lillie Oliver Poor.



No fim da vida, por volta de 1665-1669, o pintor viria a retomar uma vez mais o motivo em Autorretrato com Dois Círculos (Kenwood House, The Iveagh Bequest, Londres), ao fazer-se representar rodeado dos atributos da sua profissão. Na composição do Museu Thyssen-Bornemisza, cuja data de execução pode ser situada por volta de 1640, o artista faz-se representar de preto, com gibão rematado por pele e duas correntes de ouro, sob fundo neutro.



Rembrandt van Rijn, «Autorretrato com Dois Círculos» (pormenor). Amesterdão, c. 1665-1669. 
Óleo sobre tela. Kenwood House, The Iveagh Bequest, Londres.



O traje é idêntico ao envergado por Dirk Bouts (1410/1420-1475) e Rogier van der Weyden (c. 1399-1464) em duas gravuras de Hieronymus Cock (c. 1510-1570), editadas em 1572, nas quais encontrou inspiração, e indica, nessa medida, um tributo aos artistas flamengos do século XV.

A constante introdução de variações na indumentária, que transporta o artista no tempo ou o traz de volta ao seu tempo, ou as duas coisas em simultâneo, serviu igualmente ao pintor de meio para alicerçar o seu lugar no seio de uma longa tradição artística, na qual se igualou, ou mesmo rivalizou, com grandes mestres, como parece ser o caso do Autorretrato (1640, The National Gallery, Londres), em trompe l’oeil, na qual retoma a pose de Albrecht Dürer em Autorretrato (1498, Museu do Prado, Madrid).

Texto de: Luísa Sampaio, Conservadora de pintura, Museu Calouste Gulbenkian
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