MIBE 2017 | Exposição de Edson Macalini
Está patente até ao dia 16 de novembro, na área de exposições da Biblioteca, a exposição Arqueologias afetivas - escavações poéticas entre a Amazónia e Portugal, do autor brasileiro Edson Macalini.
Trata-se de uma atividade inserida na celebração do Mês Internacional das Bibliotecas Escolares, realizada no âmbito da parceria com a Fundação Casa-Museu Maurício Penha.
O processo de criação artística visto pelo autor
Ver, Ouvir, Olhar, Caminhar, Admirar, Sentir, Perceber, Tocar, Aproximar, Pegar, Coletar, Lavar, Guardar, Proteger, Apreender/ Aprender/ Prender/ Soltar/ Voar/ Seguir/ Ser. Gosto daquilo que me impressiona, assim, como é impressionante o que os lugares causam em mim. E não foi diferente a sensação e todos os sentidos ativados em Sanfins do Douro. Sentia na pele o frio, assim, o calor do sol me envolvia como um cobertor, acalantado pela mesa posta, com suas louças arrumadas, e a funcionalidade que cada uma tinha, a de receber os líquidos e os alimentos que comeria. Senti-me abraçado e encantado pela paisagem e a magia presente nos causos e histórias ouvidas, senti a vontade de investigar com cuidado e encontrar sozinho os vestígios de vidas e histórias que o próprio lugar me diria.
Comecei pela raiz, lugar da fixação, de essência da memória, de preservação da vida. Lugar de arraigamento, de permanência em um local, de se prender, da necessidade de se estabelecer. Assim, as histórias de cepas de uvas chegaram a mim, primeiro pelos caules, galhos, folhas, frutos, até chegar ao liquido precioso, vermelho como o sangue. Quente como o carinho. Mas retornei as raízes, coadunada as pedras/palanques que sustentam seus galhos e que desenham emaranhados suspensos, barras de xistos, semelhantes ao ferro, resistentes em sua forma frágil/delicada ao toque metálico, cujas pedras arredondadas compunham no solo a sua sustentação.
Dentre as caminhadas, entre descidas e subidas, surgiu um revirado de terra fresca e úmida, com rastros de pneus, forjado por um objeto escavador que, remexendo o solo, fez surgirem pequenos fragmentos de memórias. Dentre a sorte de objetos, cacos de louças ficaram expostos, brilharam como lembranças imersas dentro de uma caixa que há muito tempo não se abria, e, então, pude tocar em memórias não vividas por mim e perdidas nas camadas de terras que as escondiam. Coletei alguns deles, embrulhei no casaco que serviu de sacola, e continuamos a caminhada. Segui adiante, coletando folhas, galhos, pedras, terras e cacos, no percurso de Sanfins a Agrelos, cidade de 45 pessoas adultas e uma criança. Agrelos era silenciosa como uma idosa, que havia passado por mim com suas vestimentas negras, de cabeça baixa dirigindo-se à Igreja, cujo interior silencioso era quebrado pela ladainha coletiva e diária das beatas.
A ausência de sons da paisagem findou-se pelos gritos de um passado que ressoava em meus ouvidos e que me incitou a querer narrar este lugar em suas delicadezas escondidas e enterradas. Essa necessidade recém surgida se encheu de pleno sentido quando avistei um barraco de madeira que se despencava por umas das ladeiras daquele lugar, e que, pelos sinais, estava abandonado há muito tempo. Não pude me aproximar, pela ausência da rampa/calçada que um dia lhe deu acesso, mas pude ver de longe as panelas, canecas, talheres, um armário caído, uma cadeira solitária, um quadro de um santo católico e todo o resto tomado pelos emaranhados espinhosos da amoreira que abraçava o local, como se num desejo de entropia estabelecesse que aquilo voltaria para terra, e que com ela se enterrariam na mesma memória, memória das raízes.
Rodeei o barraco para poder ter a visão de um angulo maior, mais amplo, e vi que lá em cima, suas paredes escoravam-se nas pedras que também rolavam pelo morro, e que debaixo dos galhos secos da amoreira haviam muitos cacos de louças quebradas, que, então, se somaram aos outros já coletados. Tentei reconstruir diversas histórias, mas como não sei como é a vida de um português, abandonei a ideia e deixei os cacos falarem comigo e me dizerem o que fazer. Segui adiante, admirando pedras postas e ordenadas em muros, ladeados por oliveiras retorcidas e centenárias.
Retornei a Sanfins, um sol forte me abraçou e junto a um vento fino e silencioso, rachou-me a pele e escreveu em meu rosto o sentido daquilo que deveria mostrar. Passei dias registrando a sombra dos cacos de louça projetadas pelo sol que me sugeria uma aura de proteção e preservação de uma memória não vivida.Outros cacos me pediram continuidade de seus desenhos e traçados; outros evocavam a sua ancestralidade, a sua relação terra/mineral, e, por isso, fundiram-se aos outros pratos de barro indígenas que encontrei nas ruas de Parintins, na Amazônia Brasileira, onde permaneci por um ano e meio, e que resultou nesse encontro entre águas/terras amazônicas e portuguesas.
Arqueologias Afetivas é o nome dado a essa coleção de memórias arqueológicas não vividas por mim, mas coletadas pelas minhas mãos, cujo afeto abraça-se ao desejo da mesa posta, à comida preparada e servida nas louças que se quebraram ou se romperam, ao cozinhar o alimento que será coletivo, compartilhado, à espera de seus afetos para a refeição familiar, à espera das visitas, da comunidade, de seus amores.
Arqueologias Afetivas é o encontro com aquela terra que me lembra a infância, vivida com meus entes queridos no interior do Brasil, no Sudoeste do Paraná, região esta que faz fronteira com uma outra cultura, com um outro país, a Argentina, e que bastante se assemelha à paisagem e à experiência do sentido de fronteira, que me foram possibilitadas pela vivência entre Portugal e Espanha.
A região dos parreirais de uvas, do vinho, da boa comida, da gente simples e solidária, da hospitalidade terrena e cultural, e do aconchego que o sol nos proporciona, fazem deste trabalho o sentido afetivo de sua exposição, sendo o resultado de uma escavação afetuosa que agora recebe a forma do meu abraço como um retorno pelo carinho e pela receptividade com a qual fui recebido.
Edson Macalini