sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Proibido jantar sozinho

 

 

TAXAS PARA COPOS DE ÁGUA E CORTAR O PÃO SÃO LEGAIS EM PORTUGAL. IMPEDIR QUE SE COMA SOZINHO ACHO QUE TAMBÉM. ALERTA

F

oi publicado há uns dias o novo guia de “regras e boas práticas nos estabelecimentos de restauração e bebidas”, elaborado pela associação do sector, a AHRESP (Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal), e pela DGS (Direção-Geral do Consumidor). Modernaço. Neste guia, estão já as regras e boas práticas para a questão das gorjetas e a malandrice que é colocá-las como “sugestão” na pré-fatura, da cobrança na partilha das doses, do uso do WC, dos copos de água ou até da cobrança por pedidos extras. E basicamente é assim. Desde que esteja anunciado, o estabelecimento pode arrecadar por tudo o que lhe der na gana, desde que “implique um serviço”. O que se aplica a um copo de água da torneira (desde que conste na lista de preços) ou aparar o pão. O que me deixou de pulga atrás da orelha foram as “regras de ocupação de mesa — gestão de espaço”. E lê-se: “Não existem regras legais sobre a gestão dos espaços. Exceto quanto ao limite de capacidade.” Pressinto perigo. Neste verão, os restaurantes e esplanadas de Barcelona começaram a recusar “mesas para um”. Os expedientes já eram variados e passavam por dar a pior mesa ao comensal solitário. Agora, enxotam-no. Questões de rentabilização da mesa. Esta indefinição das regras nacionais abre a porta a essa possibilidade. Alerta! Alerta!

Decido, pois, escrever a fazer a apologia de se “jantar só”. Defender o magnífico tempo gasto em estar numa esplanada umas horas a pensar ou a fazer coisa alguma a não ser ver pessoas. O que fazem, como interagem, como andam, como seguram a chávena, como se deslocam no espaço. Saber distinguir cores, tribos, formas de vestir, nuances classistas. E realizei que não imagino como poderia ter sido repórter sem os milhares de horas (sim) sentado em esplanadas e restaurantes de cidades por todo o lado ou em praias como espectador atento do mundo. Uma impossibilidade hoje. Mesmo que nos sentemos no primeiro balcão com vista para a Existência, ignoramos o palco e somos sugados pelo ecrã do telemóvel para ver “o que se passa” e desconsideramos a Humanidade que nos rodeia (que possivelmente também estará agarrada a um smartphone). Mas ao afundarmos a cabeça no ecrã, também mandamos a mensagem de que não estamos verdadeiramente abandonados. Porque, afinal, diz a tese dominante, não há nada mais patético e sinónimo de fracasso do que estar só, sem mostrar sinais de que se espera alguém. Este é o dogma da atualidade. A solidão — toda a solidão — é uma “epidemia”, o que faz com que os solitários sejam doentes e frágeis e sem discernimento. Toda esta confusão conceptual é aberrante. E é uma chatice para quem gosta e sabe estar só. Está provado que o tempo que uma pessoa passa sozinha não está correlacionado ao quão solitária essa pessoa se sente. Pessoas que estão muito pouco tempo sós podem sentir uma profunda solidão. E o contrário também é válido.

Há imensos artigos recentes sobre “jantar só”. Constatei da sua leitura que afinal se trata de um desafio emocional, uma audácia, um ato ao alcance de poucos. Os títulos eram exclamativos: “Jantei só e gostei!” Essa eventualidade — imagine-se — não tem de ser vista como um frete, pode até controlar-se a ansiedade inerente (sim, a “ansiedade masculina de jantar só”). Com os conselhos adequados, a experiência pode até ser agradável, mas o balcão não é a melhor alternativa, dado que a pessoa que se irá sentar ao lado acabará por entrar no seu “espaço pessoal”. E voltei a pasmar: “É preciso ser uma pessoa forte e muito segura de si para jantar só. Não é ser socialmente perverso, mas ‘socialmente iluminado’.” Ei, onde é que isto já vai? O truque para conseguir jantar só, li algures, será praticar o mindful eating: um foco e uma atenção ao que se come (existe um Center for Mindful Eating).

Todo este empenho em conseguir “jantar só” baseia-se inteiramente no sobreviver ao julgamento do Outro, ao que estarão a pensar por se sentar solitariamente e assim enviar uma mensagem prejudicial a estranhos com quem nunca mais se cruzarão. Os artigos (os habituais dos jornais e revistas internacionais) centram-se em conseguir levantar a possibilidade de interiorizar que jantar até pode “ser um luxo”, um “momento dedicado a si”, e mesmo um “que se danem os outros”. Os nómadas digitais têm isso resolvido, pois escolhem um determinado tipo de estabelecimentos em que podem ter o telemóvel ligado ao FaceTime e através de auriculares estar a falar com outra pessoa enquanto comem. As cadeias de fast food não contam para esta discussão.

Os detratores do jantar solitário vão buscar filósofos do século XX e novelistas do século XIX que algures terão escrito uma frase contra o refeiçoar desacompanhado. E vão mais longe. Usam a ostentação decadente do cônsul Lúcio Lúculo (um grande general do século I a.C., que posteriormente buscou consolo no ócio), que, certa noite, ao constatar que a ementa era fraca, mandou preparar um opíparo banquete. Quando o cozinheiro lhe perguntou quem viria jantar, terá dito: “Não sabeis que hoje Lúculo janta com Lúculo?” Tudo isto me parece argumentário que poderá ser usado pela AHRESP para justificar que os restaurantes possam não atender “unidades humanas solitárias” ou que se aventurem a cobrar uma taxa Lúculo.

Estava longe de imaginar que quando vou a um restaurante ou esplanada e respondo esticando o dedo indicador “sou só um!”, estou já a efetuar um ato de resistência à gentrificação dos cérebros dos donos destes estabelecimentos. Basicamente, quero apenas o que sempre quis: refastelar-me a ver a banda passar. Não há melhor.

Luís Pedro Nunes.  Revista E. Semanário Expresso#2661, de 27 de outubro de 2023 

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