terça-feira, 28 de novembro de 2023

Escola a Ler... contra a violência de género | 12º


 

27 de novembro, Dia laranja


A proposta de leitura /debate, da Biblioteca, para os alunos de 12º ano foi "Novas Cartas Portuguesas", de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. 

 

 
 
EXCERTO:
 
Minha querida Mariana 
 
Só hoje consegui autorização da tua Madre Superiora para te escrever, às escondidas de teus pais e meu marido, que embora não te conheça de ti não pode ouvir falar sem raiva, certamente pela amizade que sabe eu te dedicar e isso o enfurece. Por princípio odeia tudo o que amo, ridicularizando sempre os meus sentimentos, destruindo-os pela sua delicadeza e sensibilidade com grande prazer e riso, brutalmente.
As de ti o que é feito, minha Mariana? Que resta de ti, aí de clausura posta à força? Recordarei sempre teus gritos com altivez, tua raiva, tua recusa enlouquecida em aceitares o convento, teu ódio; depois perante o inevitável, teu mutismo, teu aceitar dos factos com altivez, o desprezo por todos a subir-te aos olhos e o sorriso cortante a paramentar-te de ironia a boca em jeito de vingança…
Que desgraça o se nascer mulher! Frágeis, inaptas por obrigação, por casta, obedientes por lei a seus donos, senhores sôfregos até de nossos males…
Quantas vezes lembro dos desabafos que tínhamos, das revoltas! Oh, vida-madrasta, que separadas nos pôs, a nós, tão amigas, tão unidas quase desde o berço. A ti te deram clausura, a mim marido que recusaria caso pudesse ou me ouvissem a vontade, mas bem sabemos, minha pobre amiga, quão pouca valia têm nossos desejos ou quereres, sejam eles de razão ou de coração.
Pensavas já, certamente, que te havia esquecido, esquecendo as horas passadas juntas, nossas conversas e jogos, nossas promessas que não nos deixaram manter, pois em nós nada mandamos e de nós nada decidimos, os desejos vergando aos de nossos pais que nos ordenam ou de nossos maridos que nos compram, homens sempre bem talhados em fatos, avançada idade e dinheiro, em posição na vida. – Que repugnância, Mariana, que martírio! – Sabes tu o que é sermos tomadas nuas por mãos apressadas e bocas moles de cuspo? […] Mariana, sabes tu, minha irmã, o que é calarmos, dia após dia, o nojo, a aflição já sem lágrimas, nem lágrimas tendo para nos chorarmos, nem pena conseguirmos arranjar por nós próprias?
[…]
Dizem que sou estéril, ouve! Dizem-me que sou estéril, disso me culpando meu marido como se de pecado me acusasse, jamais pensando ele a mansa, dolorosa, mas total alegria que isso me dá. Como poderia eu conceber um filho de semelhante homem, a quem o meu corpo se recusa, mesmo quando rendido, crispado todo ele de ânsia e repugnância…
Estéril, seca, despojada de tudo. Que indignidade, que abjeção! Que lenta morte a que nos condenam.
 
Joana
25/4/71
 
BARRENO, Maria Isabel; HORTA, Maria Teresa; COSTA, Maria velho da – Novas Cartas Portuguesas. Lisboa: Dom Quixote, 1998, pp. 146-148. ISBN 9722015001


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