terça-feira, 3 de setembro de 2019

A essência do trágico




Para Eduardo Lourenço, Antero de Quental (na imagem) marcou o início da modernidade literária no nosso país





T
odos os ciclos da criação poética, todos os ensaios filosóficos, todas as interpelações cívicas e todos os textos políticos de Antero de Quental (1842-1891) foram objeto de estudo e interpretação de Eduardo Lourenço, ao longo de mais de 50 anos. Encontram-se agora reunidos num único volume com o título genérico Antero, Portugal como Tragédia. Destaca-se, em apêndice, um relatório da PIDE — arquivado na Torre do Tombo — acerca da conferência que Lourenço fez sobre Antero, em 1971, no Teatro Gil Vicente, em Coimbra, mencionando nomes de professores e alunos da Universidade de Coimbra que assistiram.

Para Eduardo Lourenço, Antero é “a maior referência intelectual portuguesa” e “o primeiro português que teve uma consciência trágica do destino humano”. E justifica que vários ensaístas, para retirar Antero do “lote dos suicidas anónimos”, atribuem a procura desesperada da morte a depressões patológicas, a uma peripécia subjetiva ou, ainda, a uma tragédia sentimental, quando se trata do “último ato de uma vida que desejou tocar a face de Deus e não a encontrou”. A essência do trágico resulta do “combate a rosto descoberto que destrói uma por uma, com uma espécie de raiva triste, todas as flores da ilusão, todas as esperanças que o nascer do dia oferece à alma humana”.
Antero — considera Eduardo Lourenço — marcou o início da nossa modernidade, representa “o seu próprio ato fundador”. Verificou-se na criação poética — e esta é a primeira leitura literária profunda que se faz a partir de Odes Modernas — não apenas ao nível da ideia, das incursões no universo da filosofia; na poesia social, na “poesia revolucionária do futuro”, mas ao abrir caminho ao imaginário de Cesário Verde, de Camilo Pessanha e de Fernando Pessoa. Teve, contudo, maior impacto na afirmação da modernidade o discurso inaugural das Conferências do Casino (1871): Causas da Decadência dos Povos Peninsulares. Introduziu uma revolução cultural que “nem é de natureza literária, nem política, nem mesmo ideológica ou banalmente filosófica, embora se traduza em todos estes planos, mas religiosa”. Proposta sem precedentes em Portugal, “no círculo da religião, não abstratamente visada, mas concreta, institucional”, abrangendo todos os valores intocáveis, desde os da pátria aos da justiça, desde os da ordem aos da família.
Estabeleceu, pela primeira vez em público, um separar das águas, “um ajuste de contas da nossa cultura com ela mesma”. Atingiu o legado doutrinário imposto pelo Concílio de Trento, que amordaçava a liberdade de consciência e todas as outras liberdades e instaurou o Tribunal da Inquisição, implantando o catolicismo dogmático e intolerante. Antero avançou, entretanto, com a urgência de uma rutura frontal. As Conferências do Casino foram proibidas pelo Governo e encerradas pela polícia.
Decorridos 150 anos, apesar dos Concílios do Vaticano e das encíclicas que surgiram, a polémica não perdeu atualidade. Continua a ser — acentua Lourenço — uma questão “recalcada, diluída, escamoteada, não apenas na ordem das ideias (que é essencial) mas nos efeitos delas, no plano dos sentimentos, dos afetos, dos rituais privados e públicos que os encarnam”.
Posto isto, Eduardo Lourenço observou, em 1991, e volta a repetir hoje: “A cem anos da sua voluntária morte, Antero ainda tem inimigos. E merece tê-los. O horror seria que os não tivesse. (…) A visão unanimista da Geração de 70 que tem nele o seu ícone cultural esconde mal os conflitos, os antagonismos, as rivalidades, surdas ou clamadas, que, com matéria viva, o atravessaram.” Antero deixou uma obra que “é a estrela negra, fascinadora e repulsiva. (...) A configuração trágica da obra e da vida de Antero — a primeira entre nós que assumiu esse perfil — é odiosa a gregos e troianos”.
Nestes ensaios, Eduardo Lourenço apresenta-nos uma visão original e clarificadora da problemática anteriana do “prosador e do poeta de génio” e outro aprofundamento do homem múltiplo e trágico. A exigência da palavra verifica-se nos mais diversos textos. Aliás, Vitorino Nemésio, mal saiu a Heterodoxia, livro de estreia de Eduardo Lourenço, em 1949, alertou para “um nervo e uma elegância que farão a inveja de muitos prosadores”. Confirmou-se. Eduardo Lourenço, que integra uma geração de escritores consagrados (Vergílio Ferreira e Carlos de Oliveira são exemplos incontestáveis), é também um dos grandes escritores da língua portuguesa.
António Valdemar, E-Revista Expresso, 31 de agosto de 2019

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