segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Dicionário do livro


O livro sobre o livro





No prefácio das autoras ao seu Dicionário do Livro: Da escrita ao livro electrónico, fica claro um dos problemas do livro – não deste livro em particular, mas do próprio conceito e forma que designamos pela palavra ‘livro’. Confrontadas com a vastidão do tema e com a natureza, em última análise, arbitrária das categorias que temos de usar para classificar o mundo – ainda quando esse mundo é o mundo aparentemente determinável e ordenável do léxico bibliográfico -, Maria Isabel Faria e Maria da Graça Pericão tentam explicitar as múltiplas racionalidades com que o vocabulário do livro se constelou nas cerca de 25000 entradas (sim, 25000!, não é gralha) que integram esta opus magnum. Por exemplo:

«[…] pretendemos registar os termos do passado que, pouco a pouco, foram sendo abandonados; fazê-lo em simultâneo com a terminologia a que chamaremos de ponta, que as novas tecnologias da comunicação aplicadas à informação trouxeram consigo. Pretendemos também conservar na língua portuguesa algum vocabulário cujo desaparecimento tende a verificar-se com o advento e a imposição de novas técnicas.» (p. 7)

«A terminologia que a obra contempla pretende ser a mais característica de ciências e/ou disciplinas como história da escrita e sua natureza (paleografia, diplomática, filologia), sigilografia (importância documental orgânica do selo), bibliografia, história do livro, biblioteconomia, codicologia, novas tecnologias ao serviço da informação (informática e ciência do audiovisual), sociologia da informação – suas incidências e problemáticas sociais, ciências físico-químicas (no que respeita a problemas e técnicas de conservação dos suportes de escrita e seu restauro) e novas questões da ciência da informação, indústria da informação, gestão de documentos e gestão da informação.» (p. 9)

Esta dificuldade em circunscrever a terminologia a incluir não decorre apenas da intenção de combinar organização sincrónica e diacrónica, dando conta de momentos históricos significativos através da terminologia específica de certas épocas e tecnologias. Decorre também da participação do livro em inúmeros processos sociais e culturais, e das consequentes associações semânticas que expandem o vocabulário do livro para múltiplos contextos de produção, transmissão e recepção. E decorre ainda de uma intensa proliferação lexical nas três últimas décadas – em muitos casos através da importação de palavras e expressões em inglês – originada pela acelerada transição da cultura impressa para a cultura digital, que reconfigura a materialidade do livro. Por causa deste processo, milhares de novos termos oriundos da linguagem das aplicações e das redes informáticas passaram a fazer parte do vocabulário do livro. O efeito combinado destes três factores parece tornar vã qualquer tentativa de saber exactamente o que constitui um abecedário do livro num horizonte que se estende do manuscrito ao electrónico.

De algum modo, este dilema é também o dilema que se coloca quando se quer fazer um livro, qualquer que ele seja. O códice impresso pós-Renascentista e os modos de produção disciplinar do sentido da escrita consagraram a unidade discursiva autor-título-tema. O livro passou a ser sobretudo essa unidade material e discursiva discreta, cuja extensão era função dos limites do tamanho das folhas e do número de cadernos que a flexibilidade do papel permitia combinar e que as mãos humanas eram capazes de acomodar. Tal como o rolo de papiro ou o códice de pergaminho, também o códice de papel optimizou aquela relação. O livro era um modo de suster nas mãos o universo ordenado da escrita, um mapa temporário da infinitude da significação. À portabilidade e à manuseabilidade, isto é, à forma como o códice ergonomizou a sua materialidade para nela inscrever o metabolismo da leitura individual, associou-se desde cedo a experiência da coerência interna do seu discurso, criando como expectativa – na cabeça de escritores e leitores – a ergonomia do espaço mental das categorias, das disciplinas e dos géneros.

Fazer um livro é fazer caber no espaço arbitrário de um certo número de páginas o espaço verbal, também arbitrário, de um certo número de palavras. E encontrar ou inventar a posteriori a lógica interna que estabelece as correspondências entre um espaço e o outro. Este desejo de coincidência entre a unidade material do discurso e a unidade material da escrita e da impressão é, de algum modo, uma imagem do desejo humano de recriar e ordenar no livro o próprio universo. No livro, a magia da escrita parece realizar no mais alto grau o poder simbólico da linguagem humana. Por isso o livro nunca se chega a secularizar inteiramente: algo da psicose totémica que o produziu como veículo da divindade parece sempre prestes a emergir da sua condição bibliográfica.

A regra da ordenação alfabética contém não só a história dos sistemas de catalogação e indexação desde a antiga biblioteca de Alexandria, mas capta, na justaposição aleatória de termos gerada pelo princípio da alfabetação, a radical arbitrariedade combinatória criada pela invenção da escrita alfabética. Para Marshall McLuhan, a escrita alfabética, que a imprensa mecanizou, foi o instrumento de destribalização da humanidade, que tornou possível o pensamento linear, o individualismo e o racionalismo grafocêntrico da visão. A forma do dicionário pode considerar-se um dos expoentes da galáxia Gutenberg e uma realização do mito do livro como espelho ordenado do mundo, capaz de esgotar uma certa ordem de representações, cujo todo é a coincidência do livro consigo mesmo – com o seu princípio e o seu fim, e com a sua ordenação interna de uma ordem externa.

Sem a flexibilidade que teria numa versão electrónica sob a forma de base de dados que integrasse em múltiplas hierarquias as categorias das diversas constelações terminológicas, tornando-as pesquisáveis de forma automática, o Dicionário do Livro conserva todavia intacta a ontologia bibliográfica da sua espécie – genealogicamente marcada no seu próprio código bibliográfico, que remete para a história desta forma particular de livro (no desenho gráfico neo-clássico, na sobrecapa, na capa cartonada, na composição em dupla coluna, no uso de ilustrações a negro, no tipo escolhido). Das 1288 páginas desta edição, as entradas alfabéticas ocupam 1234 – que variam entre o mínimo das letras Y (1), W (2), K (2), X (3) e Z (3) e o máximo das letras A (105), L (105), P (123) e C (170). Para se compreender o livro – não só o conceito e a forma que designamos pela palavra ‘livro’, mas este livro em particular – nada como reparar na produtividade combinatória e meta-referencial da máquina alfabética que o dicionário constitui. Tal como no padrão gerado pelos vários tipos combinados no desenho da sobrecapa, trata-se de transformar o acaso da letra na ordem de sentido do livro:

«CABEÇA DE FOLHA – Linha de texto recuada, ligeiramente separada das do texto da folha, onde é indicado o título do livro (do lado esquerdo) e o título da parte ou capítulo do livro (do lado direito). No caso de o livro não estar dividido em partes nem capítulos o título aparece impresso em todas as páginas, na totalidade ou sob forma abreviada e, no primeiro caso, se for extenso, pode ser dividido, metade para a página da esquerda e a outra metade para a página da direita. Obras há que não apresentam cabeça de folha. Título corrente. Título corrido. Título recorrente. Cabeceira de folha. (port. Bras.) Cabeço.
 CABEÇA DE LEITURA-GRAVAÇÃO – Mecanismo electromagnético de pequenas dimensões usado para registar, ler ou apagar os pontos polarizados que representam informação num disco ou numa fita magnética.
 CABEÇA DE MORTO – Letra invertida.
CABEÇA DE PÁGINA – Parte superior da página. Ver tb. Cabeçalho.
CABEÇA DE PORTADA – Linhas de texto colocadas na parte superior da página de rosto, nas quais se indicam os nomes do autor, do editor e da série.
CABEÇA DE PREGO – Termo de gíria tipográfica que designa o tipo cansado pelo uso.
 CABEÇA DE VERBETE (port. Bras.) – Ver Entrada» (p. 178)


Referência Bibliográfica:

FARIA, Maria Isabel e PERICÃO, Maria da Graça - Dicionário do Livro: Da escrita ao livro electrónico. Coimbra: Almedina, 2008. [ISBN 978-972-40-3499-7]


Recensão crítica de Manuel Portela, publicado no Blogue OLAM - Os livros ardem mal.  


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