terça-feira, 31 de outubro de 2023

A minha geração

 

 

 

SÓ TENHO CERTEZAS INABALÁVEIS, E EM BREVE MINORITÁRIAS, QUANTO À IMPORTÂNCIA CIVILIZACIONAL DA PRIVACIDADE E AO DESEJÁVEL MAXIMALISMO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO

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á tempos encontrei, esquecido numa estante, “Geração X”, sucesso editorial de 1991 que li em 94 e a que nunca mais voltei. Andava a pensar escrever sobre isso, não sobre o livro de Douglas Coupland, mas isso das gerações, e da minha geração, quando vi que a “Harper’s” teve a mesma ideia.

Na edição de Setembro da revista, num texto intitulado “My Generation”, o filósofo Justin E. H. Smith (n. 1972) manifestava o seu cepticismo quanto ao conceito de “geração”, essa descrição genérica e definitiva de um grupo de pessoas apenas porque nasceram na mesma época. É um método, diz ele com graça, que lembra a astrologia. Ainda por cima, a “geração X” (nascida entre 1965 e 1980), ao contrário dos “boomers”, que os antecederam, e dos “millennials” (“geração Y”) e “zoomers” (“geração Z”), que lhes sucederam, nem nome tem, apenas uma letra que designa uma quantidade indeterminada, uma identidade indeterminável.

Agora que essa geração, a minha, começa a ser desconsiderada, hostilizada, ou, na melhor das hipóteses, tolerada, vale a pena pensarmos nos valores e referências a que erradamente atribuímos sentido, validade e durabilidade intemporais. Entre as referências, condicionou-nos o facto de sermos os últimos filhos da Guerra Fria, os últimos não nativos digitais, de termos passado por um fugaz optimismo histórico na juventude, e de usarmos e abusarmos das palavras “independente” e “alternativo”, na sequência de “Sexo, Mentiras e Vídeo” em 1989 e de “Nevermind” em 1991. Quanto a valores, entretanto questionados ou desacreditados, Smith menciona a crença na democracia liberal, o respeito pela autonomia da arte ou o equilíbrio entre a autenticidade e a ironia.


Dito assim, há que concordar que envelhecemos mal. Somos agora tão ridículos como os ridículos dos anos 60, os “ó Leonilde is love” de quem fazíamos pouco. É por isso que Smith se assume como um “derrotado”, atirado para o caixote do lixo da História pela velocidade dos tempos (o subtítulo do livro de Coupland já anunciava isso: “Contos para uma cultura acelerada”). Há debates em que as novas gerações, com coordenadas completamente diferentes, perderam quaisquer plataformas de entendimento com os quarentões e cinquentões: “Querem que a boa arte seja feita por boas pessoas — ou, mais precisamente, por bons representantes das nações, classes e identidades relevantes — e, uma vez que em geral as coisas não são assim, admitem o recurso à coerção que obrigue as pessoas a comportarem-se como se fosse.” É uma geração que, continua Smith, na impossibilidade de eliminar a ambiguidade e a maldade humanas, quer mantê-las ocultas, ou fingir que não existem, ou mudar a linguagem como se isso mudasse a realidade. Por isso os jovens Y e Z usam o termo “problemático” para referir os mais variados objectos ou discursos, submetendo-os às convicções em voga, justas ou não, desconsiderando velhas virtudes desalinhadas como o gosto, a curiosidade, a imaginação, a empatia. Quer isso dizer que a geração X estava certa, e os jovens de agora estão errados? Faço o possível por evitar esses veredictos senis, por tentar compreender aquilo de que discordo, e só tenho certezas inabaláveis, e em breve minoritárias, quanto à importância civilizacional da privacidade e ao desejável maximalismo da liberdade de expressão.

Mas é verdade que “os filhos dos anos 70 tendem a sentir-se desajustados neste novo mundo”, como resume também na “Harper’s” o crítico literário Adam Kirsch (n. 1976), a propósito da geração literária de Zadie Smith (n. 1975), autora que num famoso ensaio sobre o Facebook publicado na “New York Review of Books”, “Generation Why?” (depois incluído na colectânea “Sinta-se Livre”, 2018), observou o abismo entre a sua mundividência e a dos seus alunos. Comentando a muito criticada “distância” (“aloofness”) que alguns proeminentes escritores da geração de 70 mantêm perante certos temas e certas polémicas, Kirsch diz o seguinte, que reconheço e subscrevo: “Para mim, e suspeito que para muitos leitores da minha idade, isso é uma parte daquilo que faz deles guias fiáveis para entendermos, senão os tempos que vivemos, ao menos a disjunção entre os tempos e o ‘eu’ que tenta lidar com eles.”

 Pedro Mexia. Revista E, Semanário Expresso#2660, de 20 de outubro de 2023

 

Capa do livro “Geração X”, de Douglas Coupland

Capa do livro “Geração X”, de Douglas Coupland

 

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