A AMIZADE, INDIVIDUALMENTE CONSIDERADA, É UM CONTRATO A TERMO, AINDA QUE ESSE TERMO, NOS MELHORES CASOS, POSSA SER VITALÍCIO
S
amuel Johnson escreveu que não há “nenhum prazer tão elevado e tão nobre” como a amizade. Mas nesse mesmo ensaio, “Uncertainty of Friendship”, avisa que não devemos confundir o indubitável valor da amizade com as condições que permitem ou impedem a sua durabilidade.
Esse equívoco é decisivo, uma vez que o elogio da amizade vem quase sempre acompanhado da garantia de que se trata de um afecto permanente, nisso se distinguindo do amor romântico. O que explica que aceitemos os discursos amargos de quem descobriu que o amor não é eterno, mas desconfiemos de generalizações acerca da amizade. Ninguém diz “a amizade acabou para mim” depois de se zangar com um amigo. Ou ninguém leva essa declaração a sério. É como se a amizade em abstracto fosse uma categoria imune à experiência concreta. E, no entanto, se “muita gente falou, em linguagem exaltada, da perpetuidade da amizade, da sua invencível constância”, lembrou o Dr. Johnson, esse atributo é memorável não por ser frequente, mas por ser raro.
A longevidade de uma amizade não é forçosamente maior do que a dos enamoramentos. Inúmeras causas a determinam, como a afinidade, a companhia, a compreensão, a cooperação, a benevolência. E inúmeras causas a prejudicam: divergências, competições, invejas, suspeitas, ofensas, querelas. Se a amizade é “sinalagmática”, quer dizer, se obriga reciprocamente os contraentes, basta que um amigo se mostre insatisfeito para que a amizade colapse, mesmo sem qualquer maldade ou malícia. É certo que a amizade não está sujeita às arbitrariedades da atracção física nem ao desgaste da coabitação, e que isso a torna menos volátil do que o amor; mas toda a amizade, individualmente considerada, é um contrato a termo, ainda que esse termo, nos melhores casos, possa ser vitalício.
O ensaio do Dr. Johnson, publicado em 1758 na gazeta londrina “Universal Chronicle”, e coligido três anos depois em “The Idler”, não é um panfleto contra a amizade, antes uma constatação a frio de que “nenhuma outra propriedade humana [tem] uma duração tão pouco certa” e de que “nenhuma expectativa é tão frequentemente frustrada”. Esta última asserção surge a propósito do retomar de uma amizade que se desfez, tentativa a que Johnson chama, memoravelmente, a “renovação de uma coligação”, e que lhe serve como um teste. Porque quando essa renovação falha, isso mostra que o tempo ou a fortuna alterou os amigos de vez. E não há alteração de circunstâncias sem modificações do sentimento: “Os que estão zangados podem reconciliar-se; os que foram ofendidos podem receber uma compensação: mas quando o desejo de agradar e a disponibilidade para aceitar esse desejo diminuíram sem se dar por isso, a renovação da amizade é impossível.”
Tive, como toda a gente, amizades que acabaram. Umas por minha culpa minha, por inépcia, sobranceria, ensimesmamento, descaso, outras por deslealdade alheia, por despeito, outras sem que tenha havido nenhuma atitude censurável. Umas terminaram em choque, outras em afastamento. Algumas, sobretudo a amizade com colegas de liceu e faculdade, esfumaram-se há décadas e nem me lembro bem delas, não tenho o sentimento vivo dessa experiência, tão importante na altura; outras, interrompidas a dado momento, recuperei mais tarde, quando estávamos mais velhos e mais pacificados. Umas quantas foram encurtadas por motivos externos, mas vou percebendo que ainda se manifestam em segredo; duas, malevolentes, nunca deviam ter existido; uma, lamentarei sempre o seu fim; e talvez me esteja a esquecer de alguém. Tudo teve o seu tempo, sofreu a acção do tempo que lhe coube. E o tempo é tudo menos elevado e nobre.
Pedro Mexia. E-Revista Expresso. Semanário #2519, 05.02.2021
Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia
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