O QUE RESSOA NA NATUREZA, COMO NA VIDA, É AINDA ESTA ESPÉCIE DE ECO VAZIO, ESTE ZUMBIDO DESPIDO QUE NOS ACOMPANHA INVERNO FORA
P
enso na lição que podemos colher num poema de Louise Glück. O poema chama-se “Março”. O arranque é a falar disto que, exatamente nestas semanas de transição entre estações, experimentamos: sentimos os dias um pouco maiores e com mais luminosidade, mas a luz ainda é fria, ainda não nos resgata do peso do inverno. Apesar da impetuosidade do nosso desejo, da nossa pressa em acelerar o degelo e mudar de fôlego, é cedo. O que ressoa na natureza, como na vida, é ainda esta espécie de eco vazio, este zumbido despido que nos acompanha inverno fora. Mas Louise Glück não deixa, com isso, de observar: “mesmo assim, há hoje qualquer coisa de diferente do dia de ontem”. É um clarão de sabedoria, de cuja luz precisamos.
Muitas vezes, o que nos desencoraja é o pensamento de que os bloqueios em que encalhamos se tornaram inamovíveis e que, por mais que façamos, continuamos e continuaremos aprisionados ao mesmo doloroso lugar. Muitas vezes, o que nos aleija é essa repetida sensação de que acabamos estirados no ringue, que soçobramos sempre aos mesmos golpes, que o conhecimento, a experiência ou a vontade redundam num esbracejar atabalhoado e inútil. Não raro, o que nos faz desabar é ter de conviver com o sentimento de que falhámos, sem saber o que fazer com isso. E, até mais do que a mágoa dos resultados irrisórios, são essas escuríssimas e desamparadas investidas dentro de nós que nos levam a temer que, afinal, tudo seja vão. Nesses momentos, que em algum ponto da nossa viagem partilhamos, é importante ancorar o coração naquilo que nos ensina humildemente o verso: “mesmo assim, há hoje qualquer coisa de diferente do dia de ontem”.
Três operações interiores nos podem ser úteis. A primeira é desembaraçar-se do equívoco escondido na palavra “ideal”. Por muito que nos pareça um propulsor benéfico para nos projetar mais longe, para tonificar as nossas ambições, a verdade é que se não aprendemos a relativizar o que determinamos por “ideal”, ele rapidamente se torna a invisível armadilha que nos tortura. A realidade sobrepõe-se sempre às nossas idealizações e o que é que nos pede com isso? Desafia-nos, creio, mais do que à pragmática acomodação ou ao cinismo do faz de conta. Pede-nos uma capacidade de abraçar a vida como ela é, uma disponibilidade para uma reconciliação com o que somos, com o que conseguimos e não conseguimos, mantendo aquela resiliência dos que arriscam transformar as crises em oportunidades.
Na mesma linha, o escritor Octavio Paz defendia que outras palavras a repensar no nosso vocabulário seriam “sempre” e “nunca”. Essa é a segunda operação. Paz propunha a introdução de modulações: em vez de “sempre” e “nunca”, dizer “quase sempre” e “quase nunca”, já que o que nos parece fixo é ainda uma etapa da transformação em curso. O mais saudável é, efetivamente, fugir dos juízos absolutos que nos seduzem, porque, no seu simplismo, eles nos distanciam da verdade de nós próprios e dos outros, verdade que é sempre mais complexa, com mais detalhes e cores do que aquelas que cabem no dialético branco ou preto.
A terceira operação indica-nos a necessidade de uma conversão do olhar. Vivemos condicionados pela nossa forma de ver, bem mais do que supomos. Um excelente mestre para os trabalhos do olhar é, certamente, Alberto Caeiro. Ele explica: “O essencial é saber ver/ [...] Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),/ Isso exige um estudo profundo,/ Uma aprendizagem de desaprender”. A visão justa não é, portanto, aquela imediata, mas a que brota da aceitação, da maturação e do discernimento. Precisamos de realizar este paciente caminho interno para apreciarmos aquele pouco que hoje é diferente do dia de ontem. Esse, porém, é o mapa para reencontrarmos a esperança.
José Tolentino de Mendonça. Que coisa são as nuvens, E-Revista Expresso, Semanário 2523, 5 de março de 2021
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