quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Sabem os portugueses nadar?

 



TALVEZ NÃO. ORTIGÃO SABIA. CAMÕES SABIA. AGORA O MAR SERVE PARA REFRESCAR DA TORREIRA

Q

uando era miúdo, fazia-me confusão descobrir que os pescadores de uma pequena traineira não sabiam nadar. Normalmente, esse dado era tornado público quando acontecia alguma desgraça no mar. Havia mesmo um racional: os pescadores não sabiam nadar porque assim “era melhor” para eles caso a embarcação se afundasse em alto mar. Tolice. Vem isto a propósito da desconfiança de que, nesta pequena traineira que é Portugal, os portugueses não saibam nadar, embora não o admitam. Uma coisa parece certa: se sabem, não o demonstram, ou não têm prazer nisso. É raro ver alguém a nadar no mar. E se não nadam culpam os perigos do mar. Isto é o Atlântico, cuidado. As próprias autoridades admitem que os banhistas deviam receber formação para reconhecer os agueiros — as correntes que puxam para o largo —, e assim se conseguiria evitar a maioria das fatalidades. Mas a questão é que o mar perdeu a sua utilidade recreativa de ser um espaço para nadar e jogar com bola “sem pé”. O grande oceano reduziu-se a um efeito cénico e a uma utilidade de bidé: serve para “se molhar”. Umas cacholadas nas ondas no máximo. O mar é um anexo à areia. E nadar foi-nos útil.

Espera-se que os surfistas saibam nadar e que os nadadores-salvadores também. Há vários programas de TV no cabo em que a única coisa que é mostrada é a estupidez dos banhistas que não obedecem às ordens dos nadadores-salvadores (Austrália e Brasil) e quase morrem. Não obedecer a uma indicação de um nadador-salvador é uma estupidez que pode ser fatal e vê-se constantemente. Mas em muitos dias de verão, em muitos dias férias... o mar é uma plácida poça de água onde se poderia nadar. Mas tal não acontece. O “ir nadar” — enquanto decisão súbita e determinada — perdeu-se.

O mar, no ato performativo de “ir à praia”, tornou-se um mero arrefecedor corporal, um coadjuvador do bronze, um local onde se dá um mergulho — vá lá, dois — e está bom, volta-se para o sol. A ideia de que o mar é perigoso sempre e a qualquer momento não proporciona grandes natações mesmo em paralelo, dada a ideia de perigo constante — que é recente —, e encobre uma possível verdade: os portugueses talvez não saibam nadar. Sabem manter-se à tona por uns segundos. Não é vergonha nem drama — é apenas uma possibilidade. Estão é a culpar o mar.






Os nadadores europeus foram dos últimos povos a adotar o estilo crawl de natação, segundo relata uma Karen Carr que fez uma história civilizacional da natação. E até ao século XIX continuavam a nadar essencialmente de bruços ou de costas apenas porque não queriam colocar a cara na água (assírios, gregos e romanos tinha uma braçada tipo crawl). O mesmo se passou com os chineses, que consideravam pouco digno e tinham teorias sobre a apneia. Negreiros que transportavam escravos e mesmo colonizadores da América viram que africanos e indo-americanos nadavam crawl e terão começado a nadar dessa forma. Lord Byron descrevia-se como um “forte nadador”, mas só usava bruços. Entretanto, os americanos foram-se convertendo ao crawl e os europeus recusando tal por ser “feio” e “um truque” e um “perigo estrangeiro”. Segundo os relatos desta historiadora, os nadadores europeus só se converteram ao crawl quando perceberam que de bruços não ganhavam nenhuma competição de natação, coisa que começou a dar-se no início do século XX. Serve isto para explicar que diversos estilos de nadar não foi algo que Deus nos deu para proveito. Até há um século era um embate civilizacional.

Foram os portugueses nadadores? Ramalho Ortigão dedica a sua obra “As Praias de Portugal” quase exclusivamente às questões de life & style — foi um grande influencer —, e só no final do livro refere o ir à água propriamente dita. Na mesma altura, J. K. Jerome escrevia o extraordinário “Três Homens num Barco”, e eles fartam-se de nadar no rio Tamisa. Ortigão alerta para os perigos de entrar na água sem se ter cessado completamente a digestão. Mito que durou mais de um século. A escolha da hora do banho depende da constituição física do banhista e do fim psicológico ou terapêutico, mas Ortigão é perentório. Não se deve entrar aos poucochinhos. “Se o banhista é robusto e procura apenas a tonificação produzida pelo embate da vaga, a hora mais oportuna é a da manhã. Para pessoas débeis que procuram os efeitos da composição química da água salgada, a melhor hora é das duas às cinco da tarde.” Atenção: “É importante que o banhista ao chegar à barraca se dispa com a máxima rapidez, enfie um calção de malha de lã e se envolva numa capa ou num plaid e corra imediatamente para a água desembuçando-se no momento da imersão.” No banho, “a imersão deve ser súbita”, sendo “prejudicialíssima a imobilidade”. A natação “é neste caso um exercício de maior vantagem”. As “pessoas que sabem nadar podem ficar 20 minutos na água”. Cá temos: 20 minutos a nadar de manhã numa praia do Norte — as suas favoritas — em calção de malha de lã. Grande Ortigão.

Somos um povo nadador e esquecemo-lo. Camões salvou “Os Lusíadas” na foz do rio Mecom e já era cinquentão. E descreveu como os mancebos se atiravam ao mar quando as ninfas por eles chamavam nas ilhas dos amores. Crawl? Bruços? Maluqueira desembestada, mesmo. Mas lá que nadaram, nadaram.

“Salta n’água, e da presa não duvida, Nadando vai e latindo: assim o mancebo Remete à que não era irmã de Febo.

(...)

Já não fugia a bela Ninfa, tanto Por se dar cara ao triste que a seguia.”


Luís Pedro Nunes. O mito lógico. Expresso Semanário#2597, de 5 de agosto de 2022

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