terça-feira, 30 de agosto de 2022

O fim da conversa de chacha

 











A COVID FEZ ESQUECER COMO SE FALA DE BANALIDADES SEM STRESSAR

O

truque — ensinaram-me há algum tempo — é não deixar cair a bola no chão. A bola tem de saltitar por todos. Simples. Para mim não era. Nunca foi. Não é. O desporto aqui descrito existe há dezenas de milhares de anos e chama-se “conversa de chacha”, aquela converseta que se tem com estranhos, semidesconhecidos ou pessoas pelas quais não temos grande interesse ou a quem nada nos ocorre perguntar mas com quem, por algum motivo, nos vemos a conviver numa determinada situação durante um curto período. Ora, o silêncio seria insuportável e bizarro. Ainda mais se estivermos a falar de uma festa, pelo que se desenvolveu essa técnica de “conversa de chacha”, que é a capacidade de vários seres humanos fingirem interesse no que os outros dizem e assim se irem questionando sobre um ramalhete de assuntos inofensivos (nem finanças, nem sexo, nem política, nem morte...), fazendo com que o tempo passe e ao longe pareça que estão a ter um convívio salutar e bem-disposto. Pode até não ser o caso. Seja como for, a “bola não pode cair”. Ou o grupinho cala-se — há uma sensação de “certo... pois...” — e, possivelmente, dispersa. Pois bem, isto que aqui foi descrito parece não ser nada de mais. Já os ingleses estão a levar muito a sério a possibilidade de a covid e os confinamentos terem ferido de morte a small talk, essa “cola da vivência em sociedade”. Para eles, isso é inconcebível, pois temem que tudo fique resumido ao silêncio ou “à ratoeira da meteorologia”, ao “e este tempo, hein?” — o grau zero da converseta. É uma questão civilizacional. Mas a coisa já vinha de antes das pandemias.

Inúmeros artigos em jornais de referência anunciam em pânico o perigo de extinção das conversas de circunstância devido à covid. Questionaram cabeleireiras e taxistas — doutores da prosápia sem GPS — e ouviram as respostas que seriam de esperar: sim, era verdade, ninguém queria já ter aquela conversa de rebeubéu, e os clientes afundavam a cabeça nos telemóveis. Uma tendência pré-covídica, alertaram os especialistas. Os humanos estavam a deixar de comunicar com estranhos, e mesmo entre eles, quando juntos, optavam por se conectar aos seus smartphones. Mas agora com a covid, e após um corte violento e obrigatório nas relações interpessoais, a questão é se muitos dos que tinham um domínio frágil dessas aptidões não as teriam perdido completamente. E se as devem reaprender. Os humanos podem deixar de saber comunicar entre si. Vejam o caso do melífago-regente (Anthochaera phrygia), o pássaro do sul da Austrália agora ameaçado de extinção que pura e simplesmente esqueceu o seu canto. Uma sonoridade única entre milhões de cantos de aves. Não tendo outros da sua espécie com quem aprender, começaram a mimetizar outros pássaros de outras espécies. A analogia, além de bonita, é que os humanos, ao não conviverem com os seus semelhantes, deixaram de saber fazer muitas das coisas que antes eram banais. Pareciam ser inatas. Mas não eram. Como o bate-papo sobre tudo e coisa nenhuma. De se sentir confortável sem máscara em grandes multidões ou se calhar saber ler as emoções faciais dos outros. A única coisa que sei é que há muita gente com ataques de ansiedade. Mas também pode ser da guerra, né? O resto são detalhes picuinhas. 

Na Inglaterra até se criaram “Programas de conversação transformacional”, visando ajudar a conversar relaxadamente com outros sobre assuntos banais, dado que a conversa informal sem rumo contribui para a nossa felicidade e retira-nos do isolamento e solidão. No curso ensina-se a fugir do “está tudo bem?” e do “que fizeste no fim de semana?” e o paradoxo que é conectar-se com outra pessoa — o que exige um certo esforço — e não retirar ganho efetivo nenhum daí. Mais: uma conhecida universidade inglesa de Direito decidiu oferecer um módulo de small talk aos estudantes devido à pandemia para que, ao tornarem-se advogados, tenham capacidade de conversar sobre coisas mundanas que não eles próprios, pois constataram que muitos deles sofrem de “síndrome floco de neve” (snowflakes), cada um acha-se único e irrepetível. É essencial que saibam conversar e acima de tudo ouvir. Mais? Até as cabeleireiras criaram uma associação — o Mindfullness Hairdressers — para tentar criar um momento único de interação humana com as clientes que queiram conversar. Bem sei, os ingleses e nós, nós e os ingleses, chilrear diferentes. 

Sempre tive uma grande incapacidade para a conversa de chacha nas festas. Pouco mojo para estar ali naquele “pois é, sim, claro, é isso, e você o que acha?”. E admiro verdadeiramente as pessoas que deliberadamente conseguem fazer que aqueles humanos que não se conhecem e talvez tenham pouco interesse em tal continuem a dizer coisas uns aos outros. São gestores de conversa de chacha e “a bola não cai”. Não o saberia fazer. Nem antes da covid. Talvez há umas décadas, quando não tinha mesmo noção de nada. Mas são exemplares de canto inato, pessoas que sabem lidar com os outros de forma natural, quando lidar com outros não tem nada de natural, digo eu. 

A minha opinião já está aí em cima. A conversa de chacha está condenada. O paradigma mudou. Somos melífago-regentes afónicos, agarrados à banalidade dos smartphones — nunca sós, sempre com 10 mil ou 100 mil amigos connosco na palma da mão, completamente autocentrados, incapazes cada vez mais de interagir e trocar meia dúzia de banalidades. Não é mau. Não é bom. É o que é. 

Luís Pedro Nunes. O mito lógico. Expresso Semanário#2600, de 26 de agosto de 2022

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