Nas últimas décadas assistimos a uma explosão sem precedentes na produção e no consumo de imagens. De alguns poucos retratos na parede e fotografias em álbuns de família, passando pela popularização do cinema, da televisão e do home video, e chegando aos milhares de fotografias e vídeos digitais produzidos pelos nossos smartphones e compartilhados em redes sociais e serviços de streaming, as imagens (estáticas ou em movimento) tornaram-se simplesmente omnipresentes nas nossas vidas. Como resultado de tal omnipresença, a nossa própria experiência da realidade está a tornar-se cada vez mais informada, mediada e sobredeterminada por imagens. Desse modo, o que até há pouco tempo atrás eram oportunidades para escapar da subjetividade e do isolamento, desfrutando uma realidade mais ampla e independente – reuniões com amigos e familiares, viagens, visitas a museus, etc. – agora estão-se a tornar cada vez mais ocasiões para emular, re-encenar ou aperfeiçoar outras tantas imagens dessas experiências, com as quais tivemos contacto em revistas, filmes, programas de TV, anúncios e assim por diante. Mesmo atividades corriqueiras, como uma simples caminhada no parque, podem tornar-se rotinas bem planeadas – roteirizadas, produzidas e encenadas, se não gravadas e editadas, e com direito a trilha sonora. De forma mais reveladora, até nos raros momentos em que decidimos não carregar nenhum tipo de dispositivo de registo fotográfico, muitas vezes vemo-nos não apenas a olhar para algo – uma paisagem, digamos – mas a pensar “que bela foto isso daria”, ou “como essa paisagem é cinematográfica”, e assim por diante.
Mas isso não é tudo. Para além de moldarem a nossa experiência, as imagens às vezes parecem-nos mais reais do que a própria realidade. Para dar um exemplo simples, talvez a leitora ou o leitor compartilhem da sensação de um certo desapontamento ao entrarem em contacto pela primeira vez com uma famosa obra de arte - digamos, a Monalisa no museu do Louvre -, depois de terem visto tantas ampliações em alta definição ou mesmo acompanhado documentários inteiros dedicados a explorar todos os intrincados detalhes da produção e história dessa pintura. Experiências como essa, ao que tudo indica, têm-se tornado cada vez mais comuns, e têm levado alguns filósofos contemporâneos a proporem novas categorias concetuais com as quais procuram explicar esse fenómeno [1].
Adicionalmente, o cinema tem ocupado uma posição cada vez mais central como cânone da cultura contemporânea [2], no sentido de que é cada vez mais comum que filmes ou outras formas de narrativa audiovisual (como as séries de TV) cumpram a função de expressar e transmitir visões de mundo e da nossa condição humana que se tornam amplamente discutidas e, pelo menos nalguma medida, compartilhadas – sintoma disso é que é muito mais corriqueiro encontrarmos pessoas que se interessem pelos mesmos filmes ou pelas mesmas séries do que, por exemplo, pelos mesmos livros, ou pelas mesmas músicas. De facto, filmes e narrativas audiovisuais muitas vezes fornecem o primeiro e mesmo o único cânone efetivo para um grande número de pessoas, constituindo assim o ponto comum de referência para a avaliação de uma série de questões fundamentais relativas aos nossos valores, à nossa identidade, aos nossos costumes, à nossa moralidade, à nossa participação em sociedade, aos limites de nosso conhecimento, e finalmente, questões existenciais relativas à nossa finitude, à nossa mortalidade, e à busca humana por sentido.
Por fim, é cada vez mais comum que os próprios filmes abordem problemas e temáticas de cunho ostensivamente filosófico. Apenas para citar alguns exemplos relativamente recentes e populares, qualquer espectador minimamente familiarizado com a filosofia é capaz de localizar o papel que certas imagens ou questões filosóficas desempenham na trama de filmes como os seguintes:
● Matrix, O Show de Truman, 13º Andar: tal como na República de Platão ou nas Meditações de Descartes, esses filmes convidam-nos a considerar a possibilidade de que a realidade inteira que experimentamos seja o produto de um embuste ou ilusão, uma espécie de sonho ou véu, e de que o descobrimento da realidade última de nossa vida, a matriz por trás desse véu, depende de se transcender a experiência humana quotidiana.
● Minority Report, Agentes do Destino, Gattaca, Westworld: esses filmes exploram questões envolvendo o livre arbítrio e a responsabilização moral, tais como: Estamos determinados a agir de certa forma (por determinação divina, cosmológica, genética, etc.)? Se estamos, podemos ser responsabilizados pelas nossas ações?
● O Resgate do Soldado Ryan e Batman – O Cavaleiro das Trevas: ambos os filmes estruturam-se implicitamente em torno do familiar debate metaético entre deontologia e utilitarismo, explorando, por exemplo, a questão de saber quando seria legítimo colocar a vida de muitas pessoas em risco em nome de uma só, porque “isso é a coisa certa a ser feita”, ou de saber em que situações (se é que em alguma) seria correto fazer concessões ao mal visando um bem maior.
● Blade Runner - O caçador de Andróides, O Homem Bicentenário, Eu Robô, Inteligência Artificial, Ela, Ex Machina: todos esses filmes, juntamente com uma série de outros exemplos de ficção científica cinematográfica, exploram questões tradicionalmente investigadas pela filosofia da mente, tais como: Podem máquinas ou sistemas digitais complexos pensar? O que é a mente? Qual é a natureza da relação mente/corpo? O que define o próprio ser humano?
Não obstante a frequente aparição de imagens e questões filosóficas em filmes, esse facto não nos deve conduzir à falsa e simplificadora ideia que as relações entre cinema e filosofia se esgotam na tese de que o cinema ilustra ou explicita problemas filosóficos originalmente apresentados em outros meios. O cinema é muito mais do que um campo de experimentação de teses filosóficas ou uma arte a serviço da filosofia. Não há, nesse sentido, nenhum exagero em dizer que o advento do cinema redesenhou boa parte das feições tradicionais da filosofia. Ou, de todo modo, esta é uma tese que será explorada e defendida em várias das contribuições reunidas nesta coleção.
Uma das pretensões centrais deste volume, nesse sentido, é justamente estudar a fisionomia que a filosofia adquire em contacto com o cinema, tomando o cinema não apenas como ferramenta didática que exemplifica e revela teses filosóficas, mas principalmente como um meio capaz de efetuar transformações no próprio modo como as questões da filosofia podem ser abordadas. Com isso, esperamos poder lançar luz sobre outros e novos aspetos da relação entre cinema e filosofia, alguns deles ainda pouco conhecidos na comunidade filosófica brasileira, e também pelos profissionais e amantes do cinema em geral.
A ampliação do estudo das questões que a relação entre cinema e filosofia colocam e suas possibilidades de resposta começou a ser levada a cabo mais vigorosamente no final dos anos 80. No mundo de língua inglesa, essa abertura foi conduzida pelos ensaios precursores de filósofos como Stanley Cavell e, mais recentemente, Stephen Mulhall. No Brasil, o impulso para o estudo das relações entre cinema e filosofia deve muito ao trabalho precursor de Julio Cabrera [3]. A sugestão resultante desses seminais estudos filosóficos sobre o cinema é que a filosofia, tradicionalmente concebida como uma área restrita em termos de estratégias de “dizer o mundo”, de apreender as ambiguidades inerentes à condição moral ou metafísica humana, poderia encontrar no meio fílmico outras formas de exposição e apreensão de suas questões fundamentais.
Essa afinidade foi sustentada em, pelo menos, três direções independentes: em primeiro lugar, no estilo da filosofia, uma vez que a diversidade das formas literário-narrativas que a filosofia pode assumir – desde o estilo argumentativo ou demonstrativo até às formas compreendidas no diálogo, nos sermões, meditações ou nos romances literários propriamente ditos –, é desafiada pela sétima arte, pela imagem em movimento, que pensa por si mesma e formula problemas de um modo que não é contínuo com outras formas de apresentação (argumentativas e não argumentativas) da filosofia. Mais do que uma linguagem que apoia a filosofia, o cinema é aqui uma forma de arte que redescreve a própria ideia da filosofia e dos seus objetos.
Um segundo ponto relevante dessa interseção diz respeito à proximidade entre o cinema e a formação (em termos de estratégias de significação de si) do ser humano contemporâneo. O cinema é um objeto cultural e, como tal, incorpora perspetivas, formas de reflexão sobre a existencialidade e temporalidade muito particulares, guardando uma intimidade com a experiência individual. Pensado nessa direção, o cinema como objeto cultural e meio filosófico enriquece, a partir de seu nexo com a particularidade, com o tempo subjetivo e a individualidade, as pretensões universalizantes da filosofia.
Por último, sendo o cinema não somente uma forma da arte, mas uma realidade, o “objeto-filme” também tem dado origem a questões ontológicas diversas: Qual a natureza do filme? Como é que essa natureza se articula com outros objetos da experiência? A filosofia do cinema toma-o como um ente e filosofa sobre este ente de maneira análoga à filosofia dos entes em geral. Neste caso, a filosofia é um meta-discurso ontológico sobre a relação entre as coisas tal como elas são e as coisas tal como elas figuram em filmes. Neste modo de entender, a filosofia do cinema não é uma parte da estética, mas uma metaphysica specialis sobre uma região do Ser, os entes cinematográficos. Esses diferentes direcionamentos, que estão longe de esgotar o repertório de temas e problemas que o advento do cinema possibilitou, ajudam a perceber como cinema e filosofia se retro-alimentam e, ao mesmo tempo, colocam desafios um ao outro enquanto modos cognitivos e artísticos de exploração da experiência humana.
[1] O modo como a nossa percepção seria alterada pelas nossas tecnologias de reprodutibilidade já foi explorado por Walter Benjamin, no seu clássico ensaio “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Tecnológica”. De acordo com Benjamin: “Assim como todo o modo de existência dos coletivos humanos muda na passagem de longos períodos históricos, o mesmo ocorre com o seu modo de percepção. A maneira pela qual a percepção humana é organizada – o meio em que ela ocorre, é condicionada não apenas pela natureza, mas pela história.” (BENJAMIN, W. “The Work of Art in the Age of its Technological Reproducibility”, Selected Writings, Volume 4 1938–40, EILAND H. e JENNINGS, M. W. (Eds.). Cambridge, MA: Harvard University Press, 2003, p. 255. Ênfase no original.) Mais próximo dos nossos dias, Jean Baudrillard argumentou que a fotografia (e, posteriormente, o cinema) teriam levado à “morte da realidade”, tornando-se mais atraente e “mais real” que o próprio real; por isso ele propõe a noção de “hiper-realidade” para dar conta da nossa experiência contemporânea (ver BAUDRILLARD, J., The Perfect Crime, Verso Books, 2008, p. 87). Ver também SONTAG, S. “In Plato's Cave”. In On Photography. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1977, p. 3-24.
[2] Esse ponto é melhor desenvolvido na Introdução de COX, D. e LEVINE, M. P. Thinking Through Film: Doing Philosophy, Watching Movies. Wiley-Blackwell, 2011.
[3] Sobre a visão de Cabrera acerca das relações entre cinema e filosofia, ver o capítulo “Cinema e Filosofia: para uma crítica da razão logopática” em CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.