Quero começar com uma pesquisa feita nos EUA, pela Princeton Review.
Investigadores desta empresa educacional analisaram as transcrições dos debates entre Al Gore e George W. Bush durante a campanha presidential americana de 2000.
E analisaram também as transcrições dos debates entre Stephen Douglas e a futuro presidente Abraham Lincoln na campanha senatorial de 1858.
2000 contra 1858.
Os investigadores focaram a linguagem dos candidatos. Queriam saber qual seria o nível de educação necessário para compreender o vocabulário e os argumentos dos dois rivais.
Resultados:
Durante a campanha presidential de 2000, Al Gore falava ao nível de uma pessoa com 7 anos de escolaridade – normalmente um rapaz ou rapariga de 13 anos.
George W. Bush falava ao nível de um jovem com apenas 6 anos de escolaridade.
Os dois candidatos utilizaram uma linguagem muito simplificada, invocando argumentos pouco subtis – sem nuances, complexidade ou ambiguidade.
Em princípio, quase todos os ouvintes teriam compreendido os discursos dos rivais porque a escolaridade é obrigatória nos EUA até nono, décimo, décimo-primeiro ou décimo-segundo ano, conforme as regras de cada um dos 50 estados.
E os candidatos de 1858…?
Abraham Lincoln falava ao nível de uma pessoa com 11 anos de escolaridade.
O discurso de Stephen Douglas necessitava uma educação de mais um ano, de 12 anos de ensino.
Mantenham em mente, por favor, que o nível de escolaridade médio nos EUA em 1858 era de 8 anos.
Isto significa que Lincoln e Douglas estavam a falar para uma faixa do público americano mais instruída – e muito mais educada do que o público alvo dos candidatos de 2000.
Refiro este estudo porque é uma clara indicação dum fenómeno que se alastra nos Estados Unidos e na Europa neste momento, na minha opinião; a estupidificação do debate público. E da vida cultural.
E uma estupidificação dos média também.
Os politicos e os jornalistas utilizam uma linguagem simplificada em parte porque ela satisfaz as necessidades dos média para “soundbites” – breves citações chocantes ou sensacionalistas ou provocantes.
Para os políticos, esta linguagem rudimentar visa atrair um maior número de votantes – independentemente da inteligência ou da sensibilidade deles. Ou da capacidade de raciocinar.
Para os donos dos média, esta mesma estratégia visa atrair um maior número de leitores, ouvintes ou espectadores. Porque mais consumidores significa mais publicidade. E os media vivem da publicidade.
Hoje em dia, de Los Angeles a Paris, passando por Lisboa e Porto, os media fazem uma cobertura superficial e breve dos assuntos mais importantes – uma cobertura adaptada à lógica do sound-bite, Twitter e Facebook – e às necessidades das pessoas menos instruídas.
Hoje em dia, há muito pouco espaço na imprensa escrita ou tempo na rádio ou televisão para um jornalismo de qualidade. Ou para um jornalismo investigativo.
Quase todos os eventos e ideias são apresentados sem contexto ou história. E as opiniões dos chamados “peritos" substituem a necessária análise.
Os conceitos são simples e os paradigmas são simples. As nuances e as subtilezas são eliminadas. A complexidade desaparece. Daí, a versão da realidade construída pelos media é uma fantasia. Uma falsidade.
A realidade é bem mais complexa do que a versão que os media criam e divulgam.
É um processo muito perigoso. Porque o leitor ou ouvinte ou telespectador começa a pensar que tudo no mundo é simples.
Os media reduzem o mundo a uma mera banda desenhada. E todos nós somos personagens nela.
É nós contra eles. Os bons contra os maus…
Alias, não é um acidente que a grande maioria dos filmes americanos atuais são baseados na banda desenhada mais infantil, de heróis contra vilões: Batman, Superman, os X-Men, etc… E mesmo os filmes supostamente sérios têm personagens unidimensionais e narrativos escritos para um público pouco sensível e aculturado.
Esta falsificação da realidade conduz-nos a desastres com alguma frequência, porque começamos a pensar que há maneiras fáceis de resolver problemas tão complexos como, por exemplo, os conflitos étnicos, religiosos e políticos no Médio Oriente.
Basta enviar 50 mil ou 100 tropas dos EUA e da Europa e tudo será resolvido num mês.
Abracadabra. Paz e harmonia e todo o petróleo de que precisamos.
O George W. Bush “vendeu” este argumento infantil ao público americano quando ele começou a guerra no Iraque. E os jornalistas americanos engoliram-no. E a grande maioria do público também.
Porquê? Porque somos treinados a não questionar os políticos e os media. Treinados desde muito pequenos a pensar que nada é complexo – que não é necessário estudar, contemplar, pesquisar, raciocinar… Que a nossa opinião ou intuição é suficiente.
Claro que há jornais, revistas, programas televisivos e blogs que são mais sérios que outros. Que exigem mais dos seus consumidores. Alguns até requerem que o consumidor de notícias seja um adulto maduro, experiente e bem informado. Mas a grande maioria não requer nada mais do que os 6 ou 7 anos de escolaridade.
Agora, se calhar, alguns de vocês estão a perguntar porquê estou a falar desta estupidificação numa conferência intitulada “Saber Ler Através dos Média”.
Porque se queremos aprender ler - ou saber ler – através dos media, vamos acabar por ler muito mal. Vamos adotar uma linguagem simplificada que não serve para entender as histórias complexas.
Nunca vamos chegar a dominar uma linguagem adequada para pessoas que já passaram por muitos traumas e alegrias. Que têm experiência. Não vamos desenvolver a capacidade de exprimir as subtilizes da nossa vida.
Vamos saber ler narrativas banais, sensacionalistas e superficiais. Narrativas dum entendimento absurdamente fácil – explicações e descrições do mundo que não exigem qualquer investimento do nosso tempo.
E que têm pouco a ver com a realidade.
Leva tempo pesquisar um tema complicado e tentar compreendê-lo. E comunicar a nossa compreensão aos leitores, ouvintes ou telespectadores.
E hoje em dia, a grande maioria dos jornalistas não vai investir esse tempo. E o público também não.
Conclusão….
Penso que é uma péssima ideia contar com a grande maioria dos media para nos formar ou informar.
Se queremos saber ler, temos que recorrer a livros.
Se queremos desenvolver a capacidade de interpretar o mundo temos que ler muito.
Se queremos desenvolver uma apreciação para um mundo complexo – e uma apreciação para seres tão subtis, estranhos e intricados como nós - temos que ler literatura.
Ficção e ensaios. De autores portugueses e estrangeiros. Livros de prosa e de poesia.
Na minha opinião, não temos outra alternativa.
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