[...] a porteira na realidade já está escondida, atrás das gaiolas, e protegida pela mão invisível da Regina. Com o coração a bater, Rex, Rex. A porteira escondida atrás do pombal clandestino da varanda, antes da madrugada. A bater, a bater, o coração descomposto da porteira. Rex e Regina, venham e salvem a porteira, salvem-na de madrugada, salvem-na acocorada no trono do pombal, com a cabeça sob os panos, no alto do seu mundo. No alto do grande mundo da madrugada. Salvem-na deste mundo, levem-na no escuro,tratem-na com doçura enquanto se esconde. Mater misericordiae, abre as asas, abafa o som do coração da porteira, apaga da vista do marido dela a luz que possa iluminar o ângulo escuro onde a porteira está escondida.Ela vira-se, sai da cama, esfrega-se na parede, o fogo primeiro não alastra, depois de repente alastra, cola, passa ao cabelo, ela remove-se no chão, na carpete da sala, junto da porta, ainda abre a porta, mater, vita, ó doçura, ventris tui nobis post hoc exilium, ostende!ó clemens, ó pia, advocata, em silêncio, dulcis Virgo Maria!A porta está aberta para toda a chama. A chama da porteira sai pela escada de serviço abaixo, correndo sem ruído até ao oitavo, ao sétimo, ao sexto. Só no quinto a chama da porteira para. Crepita. É a porta do advogado do quinto. Sem barulho, fica à porta do advogado, das testemunhas e da lei. A Regina assim quer que fique. Regina acocorada sobre ela, no quinto, de asas abertas sobre o quinto, e o marido no décimo. Ainda terá a vela? Abre as asas, advocata, levanta voo, leva a porteira, condu-la na maca, ergue-lhe a vista, Regina, separa-a definitivamente da cama, do balde e do fogão. Separa-a dos dez andares que o prédio tem, separa agora, et nunc, et sempre, et séculos, das janelas abertas, cheias das silhuetas dos inquilinos lilases e brancos pela fúria da última doce madrugada. Levem-na, Reginae Rex, com vossas quatro mãos, vossos quatro pés, deste lacrimarum valle, eia ergo, ad nos converte. Levem-na sem ruído, sem sirene, sem apito, sem camisa, sem cabelo, sem pele, post hoc exilium, ostende. - Jorge, Lídia (2014). Marido in Marido e outros contos. Lisboa:Dom Quixote , pp. 19 e 26.
No passado dia 29 de novembro, o 9º E esteve na Biblioteca para mais um 10 Minutos a Ler.
Uma vez que a Camilo continua com a campanha de sensibilização sobre a violência de género, a professora bibliotecária apresentou aos alunos o conto "Marido", de Lídia Jorge, uma narrativa sobre a morte de uma mulher, vítima de violência doméstica, tendo partilhado a leitura de excertos.
Seguiu-se um curto debate sobre o título do conto e o tema em discussão.
O livro de Lídia Jorge, Marido e outros contos, está disponível na Biblioteca.
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